Uma viagem ao coração humano: a comovente história disponível na Netflix que vai te fazer repensar a vida Divulgação / Cohen Media Group

Uma viagem ao coração humano: a comovente história disponível na Netflix que vai te fazer repensar a vida

Grandes cineastas dedicaram-se a retratar as memórias mais doces — e nem tão doces assim — de personagens em pleno processo de amadurecimento. Desde mestres como Ingmar Bergman (1918-2007), diretor de “Fanny e Alexander” (1982), até Federico Fellini (1920-1993), com “Amarcord” (1973), passando por cineastas contemporâneos como Luca Guadagnino, responsável por “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017), e Paolo Sorrentino, com seu recente trabalho “A Mão de Deus” (2021). Agora, é a vez do espanhol Fernando Trueba entrar para essa lista com seu envolvente, perturbadoramente emocionante e, acima de tudo, honesto filme “A Ausência que Seremos” (2020).

Trueba vai além de adaptar e organizar as memórias de alguém que sente a falta daqueles que amou e não se conforma com a perda, uma perda estúpida, precoce e criminosa. O diretor confere a essa história, que possui uma natureza organicamente épica, um caráter de documento histórico, preservando sua alma, ainda mais delicada por ser contada sob a perspectiva de um menino.

Muitos anos depois, esse menino cresce e conta boa parte da história de seu pai no livro que empresta o nome a esse filme dirigido por Trueba. O protagonista do filme é Héctor Joaquín Abad Faciolince, um jornalista e escritor colombiano de Medellín, capital do departamento de Antioquia. Seu pai era o médico Héctor Abad Gómez (1921-1987), um renomado defensor dos direitos humanos na Colômbia durante a ditadura do general Gustavo Rojas Pinilla (1900-1975). Através da perspectiva do jovem Héctor, também conhecido como Quinquín, o filme revela detalhes sobre seu relacionamento com seu pai, culminando no assassinato de Abad Gómez por milicianos envolvidos com o tráfico de drogas — uma ferida constante em seu país — durante o governo democrático de Álvaro Uribe (2002-2010), que se recusou a negociar com grupos paramilitares, como as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

O tempo, um déspota implacável, não espera por ninguém e carrega consigo tudo o que poderia ter permanecido. Quase quatro décadas após a morte de Abad Gómez, poucos compatriotas se lembram de seu trabalho como um dos mais respeitados sanitaristas da Colômbia. Ele coordenou pesquisas sobre a importância do saneamento básico e sua relação direta com a saúde, bem como o aumento de doenças como difteria, febre amarela e cólera, especialmente entre os mais pobres. A pandemia recente de covid-19, que ainda causa pânico devido à facilidade de propagação do coronavírus e o surgimento de variantes, reavivou o interesse por figuras como o protagonista de “A Ausência que Seremos”. O roteiro do filme foi escrito pelo próprio Trueba e seu irmão, David Trueba, um diretor renomado em toda a América Latina, conhecido por filmes como “Quase 40” (2018), que retrata a vida de uma ex-cantora em busca de resgatar sua plenitude na meia-idade.

No filme, Abad Gómez é brilhantemente interpretado por Javier Cámara, um ator que se tornou um favorito de Pedro Almodóvar. E Quinquín, o alter ego do jovem Héctor, é habilmente retratado por Nicolás Reyes. Esses dois personagens mantiveram uma conexão especialmente próxima, pois Quinquín era o filho caçula entre os seis irmãos. “A Ausência que Seremos” intercala momentos da infância de Quinquín, no início dos anos 1970, com sua juventude a partir de 1983, quando ele é interpretado por Juan Pablo Urrego. A história também acompanha sua estadia em Turim, no norte da Itália, durante as férias de verão, enquanto ele volta à Colômbia. Foi durante uma dessas viagens que ele testemunhou a morte de seu pai, assassinado enquanto atendia um grupo de eleitores. Abad Gómez era candidato a prefeito de Medellín e era visto como um alvo pelas milícias, que o rotulavam como “guerrilheiro” e “falso democrata”, além de um idiota útil do Partido Comunista. A verdade é que Abad Gómez era um humanista incansável, criticado tanto pela direita bruta, que apoiava Rojas Pinilla, quanto pela esquerda colombiana, que o via como um elitista aliado ao imperialismo americano devido aos seus estudos na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.

Em certo momento de “A Ausência que Seremos”, Héctor Abad Gómez declara que a vida na Colômbia não tem valor. Seu diagnóstico para um país doente, ferido pela presença do narcotráfico e pelos regimes totalitários que perduraram ao longo dos anos, infelizmente era preciso, inclusive quando se referia a si mesmo. Héctor Joaquín Abad Faciolince se tornou um dos escritores mais respeitados da América Latina, enquanto os assassinos de seu pai nunca foram punidos.

O filme de Trueba é uma poderosa homenagem a um homem corajoso que dedicou sua vida à defesa dos direitos humanos e à melhoria da saúde de seu país. É uma história que nos lembra da importância de preservar a memória e honrar aqueles que lutaram por justiça e liberdade. “A Ausência que Seremos” é um lembrete emocionante de que, mesmo diante da adversidade, a força do amor e do legado de uma pessoa pode perdurar. É um filme que nos faz refletir sobre o valor da vida e a importância de lutar por um mundo mais justo e humano.


Filme: A Ausência que Seremos
Direção: Fernando Trueba
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.