Livros são feito pequeninas casas, para onde o espírito do homem se muda tentando adequar-se à outra vida com que seus olhos e seu coração se deparam. Ler é desfrutar de um sonho muito vívido, uma, duas, mil vezes ao longo de uma mesma existência, viver naqueles personagens, reconhecer-se neles e deixar que o conheçam. “A Livraria”, o drama em que a espanhola Isabel Coixet dedica-se a exaltar um hábito mais e mais abafado pelo progresso da ciência, é uma profissão de fé na arte, na beleza, no homem e, claro, na literatura, quiçá o instrumento mais democrático quanto a convencer-nos de que a humanidade pode ter um caminho muito mais venturoso, um futuro muito menos amargo. O roteiro de Coixet, baseado no romance homônimo de de Penelope Fitzgerald (1916-2000), alonga-se pelas idas e vindas de uma mulher que ousou bater de frente com a pobreza de espírito do povo de uma cidadezinha no centro-sul da Inglaterra nos anos 1950 e amarga uma desdita bem maior do que poderia suportar. Esse tom de crítica sociocultural fica mais evidente na passagem do segundo para o terceiro ato; enquanto isso, a diretora-roteirista aprofunda-se no exame dos aspectos psicológicos das figuras que integram a história, mais precisamente no fluxo de consciência intrincado que não determina de imediato quem é herói ou vilão.
Depois da caminhada ao fim de uma leitura, para esvaziar o pensamento das emoções e ideias que livros alimentam, uma mulher aparece sentada na praia, de agasalho verde e lenço com estampa de pássaros na cabeça. Logo resta claro que Florence Green é, com efeito, um tipo invulgar em Market Hardborough, cheia de gente dissimulada, tacanha, desde cedo perita nos finos ardis da mesquinhice. A grande ambição de que Florence se nutre deveria apetecer também os outros moradores desse pequeno de East Anglia, mas desde os primeiros movimentos, ela enfrenta a objeção de seus novos concidadãos, para onde decidiu se mudar quando da morte do marido na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), trauma que essa flor no lodo sembra cultivar com esmero, sem deixar que ninguém conspurque suas lembranças mais preciosas. Tê-lo conhecido numa livraria talvez seja o elemento que dá liga a todo o enredo, mas a sensibilidade da composição de Emily Mortimer aponta para a imanência da estética e da sabedoria no caráter da protagonista, além da coragem, predicado de que só abdica na undécima hora. A partir do momento em que resolve, por fim, comprar a Casa Velha, um imóvel estranhamente cultuado, graças à mentalidade reacionária de boa parte dos habitantes do lugarejo, Florence dá um passo muito maior que suas pernas, e compra uma briga cujo termo não é difícil prever.
O embate com Violet Gamart, a antagonista de Patricia Clarkson, nem de longe ocupa suas preocupações, e este é seu deslize maior. A senhora Gamart dita os rumos da vila, mexendo as cordas invisíveis de uma engrenagem hermética, e se o marido, o general da reserva interpretado por Reg Wilson, pensa mandar em Market Hardborough, ela manda no general. A classe da megera, primorosa em vestidos de lamê dourado, batom vermelho e um cigarro cor-de-rosa, bem realçados pela fotografia de Jean-Claude Larrieu, esconde o temperamento calculista que a move até Londres na intenção de convencer o sobrinho, um político de algum vulto na região, a desencavar um projeto de lei que facilita a desapropriação de imóveis adquiridos fora de um dado período. É o caso da Casa Velha, e o que se tem destarte é a perseguição implacável de Florence, com direito a tentativas de linchamento moral com base em especulações caluniosas. Mesmo ajudada por Edmund Brundish, de Bill Nighy, o mecenas avesso aos convescotes de Violet Gamart, ela sucumbe.
A última cena, especialmente tétrica, traz a grande revelação do filme, o mea culpa de Christine, a narradora, com Franchesca McGill Perkins dispondo livros nas prateleiras de uma loja. Nesse fragmento de “A Livraria”, a audiência se dá conta de que transcorreu meio século, mas lembra imediatamente da menina que Christine fora, na pele de Honor Kneafsey, retrato da crueldade infantil, consciente ou não, esquadrinhada pelo escritor britânico Richard Hughes (1900-1976) em “Vendaval em Jamaica” (1929).
Filme: A Livraria
Direção: Isabel Coixet
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 9/10