O filme mais agonizante, selvagem, perturbador e violento da história da Netflix Eriekn Juragan / Netflix

O filme mais agonizante, selvagem, perturbador e violento da história da Netflix

Quem aprecia histórias de andamento rápido, regadas a muito sangue e os lendários acertos de contas entre vilões e anti-heróis sujeitos a repensar a vida depois de um evento que de alguma forma os faz balançar, se esbalda com “A Noite nos Persegue” (2018), épico ambientado em Jacarta, na Indonésia, em que se assistem algumas das cenas de violência mais criativas, sangrentas e bem coreografadas do cinema recente. Perspicaz, o indonésio Timo Tjahjanto sabe que quanto mais desabotoado um filme, mais querido ele se torna, e no caso dos filmes de ação, que em geral não têm exatamente uma história para chamar de sua, há artifícios técnicos que suprem inteiramente essa lacuna. Todavia, as atuações é que fazem o público passar por cima de incoerências e repetições do roteiro e acompanhar com vivo interesse os confrontos físicos e éticos de personagens que balançam sobre a corda bamba de uma existência atribulada, tentando não cair no limbo da delinquência mais grosseira ao passo que também não estão prontos para serem os heróis que esperamos que sejam. Pelo menos não que haja transcorrido uma parte das duas horas que separam a introdução do encerramento.

Tjahjanto vai muito além da vontade de agradar seu público-alvo. Como já fizera em “Headshot” (2016), Tjahjanto confere a “A Noite nos Persegue” a aura de registro de uma chacina, que deixa pelo caminho a sucessão de corpos derrubados por Ito, o protagonista vivido por Joe Taslim, que meio por acaso se redime da vida torta que ia levando. Membro da Tríade, a máfia chinesa, Ito é o típico bom ladrão: ao termo de anos de crimes e com centenas de mortes nas costas, o anti-herói de Taslim fica abalado e não mata Reina, interpretada por Asha Kenyeri Bermudez, a garota que sobrevive a uma operação de extermínio em massa, preferindo atacar os matadores que agem em seu bando. Não demora muito e uma legião de assassinos a mando dos gângsters mais sanguinários da Ásia, furiosos com a ousadia, se põe em seu encalço. A única escolha a fim de permanecer vivo é regressar a Jacarta, sua cidade de origem, e quitar antigas pendências com a namorada, Shinta, personagem de Salvita Decorte, tentar se reconciliar com Fatih e White Boy Bobby, de Abimana Aryasatya e Zack Lee, os amigos de outras vidas, marginais como ele, além dos parentes que não reconhece mais. O problema é que não tem dinheiro, e para consegui-lo, é obrigado a, mais uma vez, forçar um pouco a ordem dos acontecimentos a seu favor, no que que conta com a ajuda de uma mulher tão cheia de mistérios como de riscos.

A crise de consciência de Ito tem tudo para acabar mal. Se não tivesse poupado Reina e demonstrado fidelidade à Tríade, a quem deve alguns favores, poderia sonhar com uma imperturbada aposentadoria do submundo e ir fazer outra coisa. Agora, tudo o que lhe resta é estar sempre fugindo, apavorado, desconfiado de todos, e pior, Reina também não está a salvo, conforme Chien Wu, um dos mandachuvas da Tríade vivido de Sunny Pang, o faz saber. Eliminar Ito torna-se uma questão de honra para a máfia, que incumbe Arian da missão. Interpretado por Iko Uwais, o melhor amigo de Ito e homem de confiança da gangue até eles seguirem caminhos distintos dentro da organização, decerto não parece satisfeito, mas não quer terminar caçado como o personagem central. O conflito inicial, que punha Ito no meio de uma roda viva justamente quando decide, pela primeira vez, fazer a coisa certa, é complementado pelo iminente ajuste de contas com Arian, recurso rudimentar e poderoso de que Tjahjanto lança mão a fim de capturar o envolvimento do público, ao passo que vai abrindo alas para as cada vez mais aguardadas cenas de violência sem limite.

Também coreógrafo de artes marciais, Uwais, obediente às marcações do diretor, recheia “A Noite nos Persegue” de sequências de tirar o fôlego, uma após a outra, tantas que o filme até ganha ares de farsa, tudo sempre intenso, muitas vezes sem preocupações estéticas de nenhuma ordem e tampouco se furtando a chocar suscetibilidades mais aguçadas, compondo uma espécie de videogame espantosamente realista, em que os jogadores não só destrincham antebraços e abdomens a golpes de faca: eles separam tendões de ossos e esparramam as vísceras de seus adversários no chão banhado em sangue. Aquele que tiver sede de pancadaria, seja mediante o bom e velho mano a mano, seja por meio de confrontos com armas brancas, tiroteios ou explosões em edifícios precários, não tem do que reclamar. Nesse departamento, as assassinas Elena e Alma, de Hannah Al Rashid e Dian Sastrowardoyo, roubam a cena. Como um casal homoafetivo, as personagens, intencionalmente ou não, a um só tempo subvertem clichês os mais variados — o da mulher asiática frágil e submissa, o da lésbica excluída e assexuada —, crescendo e aparecendo quando do duelo com a Operadora, de Julie Estelle, em que só um lado sai vivo.

O diretor de fotografia Ace Gunnar Nimpuno, parceiro de Timo Tjahjanto também em “Killers” (2014), privilegia os planos abertos, conseguidos em grandes angulares potentes, e obtém efeitos impecáveis até em lugares diminutos e claustrofóbicos, a exemplo de elevadores e viaturas, demonstrando uma vez mais que a ação não tem freio em “A Noite nos Persegue” — isso para não mencionar o expediente mais manjado, mas da mesma forma impactante, de posicionar a câmera nas costas dos atores em certas tomadas. Com tantos aspectos elogiosos, nem vale a pena perder tempo comentando algumas imagens nada persuasivas do sangue que jorra em determinadas passagens, resultado do uso de uma computação gráfica extraordinariamente precisa. A trilha sonora de Fajar Yuskemal e Aria Prayogi, que emprega sintetizadores imitando um canto distorcido, pontua a trama, orientando o público a se fixar ainda mais em Ito, um dos mocinhos mais atormentados do cinema do século 21, um homem em busca de reparação para si mesmo, mas ainda sujo com o sangue de criminosos feito ele. Alguém que nunca teve pejo de matar pelo gosto maldito de sentir-se poderoso, mas que se liberta e se atira à fonte de outros prazeres.


Filme: A Noite nos Persegue
Direção: Timo Tjahjanto
Ano: 2018
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 8/10