O filme que lotou cinemas, virou cult, mas só fará sentindo para quem cresceu nos anos 1980 está na Netflix  

O filme que lotou cinemas, virou cult, mas só fará sentindo para quem cresceu nos anos 1980 está na Netflix  

Há uma razão um tanto óbvia que explica por que filmes a exemplo de “Trovão Azul” ficam na memória de uma geração, latentes, mas recobram todo vigor e conseguem transportar o público para a época em que tornaram-se célebres — nas salas de cinema, que era a única forma (e a mais saborosa) para se saber o que se passava na cabeça de diretores e roteiristas mundo afora — assim que têm suas cenas reexibidas, hoje contando com tecnologias que uns raros sonhadores conseguiram descrever quatro décadas atrás. Da indústria cinematográfica de 1983, quando o filme de John Badham foi lançado, para este ainda verde século 21, mas já tão pródigo de mágicos avanços, definitivamente resta pouquíssimo; contudo, a natureza humana, porque encarcerada na sua mesquinhez, essa não muda nunca — e tende mesmo a piorar. Nesse momento, nos lembramos de histórias que gostaríamos de esquecer em filmes bons de se recordar. Rememoramos a nós mesmos, e choramos.

Na abertura, uma tela negra com palavras na tipologia característica dos primórdios da computação faz a divertida advertência sobre o impressionante realismo das máquinas, armamentos e sistemas de vigilância mostrados no filme, os mesmos que o governo americano empregava quatro décadas atrás. Como se fizesse um novo esclarecimento sobre o que se vai assistir no transcurso de 109 minutos, em especial na virada do segundo para o terceiro ato, helicópteros sobrevoam uma Los Angeles cinzenta, e pouco depois, o roteiro de Dan O’Bannon (1946-2009) e Don Jakoby dirime alguma possível dúvida residual: as aeronaves eram guiadas por policiais que realizavam apenas um patrulhamento de rotina, e já se punham a voltar para a base. Lá, o policial Frank Murphy está quieto em sua sala, examinando atentamente o mostrador do relógio, tão compenetrado nisso que não escuta o chamado de Richard Lymangood, o subordinado vivido por Daniel Stern, que viera em nome do tenente Kress, de Jack Murdock (1922-2001). Quando finalmente deixa o relógio — essa sua mania fica menos nebulosa numa rápida passagem na iminência do desfecho —, e aterrissa, Murphy, o típico anti-herói interpretado por Roy Scheider (1932-2008), sai com Lymangood numa diligência aérea pelos céus da Cidade dos Anjos. Badham usa esses momentos como o bem-vindo respiro cômico em que Murphy e o personagem de Stern mergulham de bico nas perversões da atividade policial, que sempre podem degringolar em expedientes abusivos ou coisa pior. A operação, que só se realiza graças a um computador de bordo que faz tudo, exceto café, e bisbilhota a vida dos cidadãos angelinos com imagens em alta resolução através das paredes — e por esse motivo fora muito adequadamente batizado de Grande Irmão, referência imediata ao romance distópico de George Orwell (1903-1950) —, presta-se a ensaio para a atuação incansável dos policiais nas Olimpíadas de 1984.

Uma descoberta inesperada de Murphy e Lymangood recoloca o enredo no caminho do thriller mesmerizante pelo qual o filme segue até o encerramento, liderado por uma figura com larga experiência no assunto. Cochrane, o jovem coronel encarnado com a verve habitual de Malcolm McDowell, em tudo lembra vilões como Alex DeLarge, o inesquecível garoto-problema de “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick (1928-1999), mas McDowell consegue persuadir a audiência a vê-lo no filme de Badham sem exagerar nas comparações com o antagonista criado por Anthony Burgess (1917-1993), uma vez que a psicopatia de Cochrane deixa Alex no chinelo. O coronel entra em cena a fim de defender a necessidade do Trovão Azul, o tanque voador pilotado por ele, nas rondas da polícia de Los Angeles, sobretudo durante as Olimpíadas. O personagem de Scheider intui — orientado pelo que conhece de Cochrane, que esteve na Guerra do Vietnã (1955-1975) com ele — que precisa ter todo o cuidado com o antigo desafeto; só não contava que o rival tivesse as costas tão quentes.

A monotonia acelerada das sequências de perseguição, com helicópteros voando entre edifícios abandonados, culmina na ótima cena em que Murphy derrota seu grande algoz — que não é o adversário vivido por McDowell. Se a estética beligerante começa a provocar mais tédio que frêmito, o entusiasmo da trilha meio “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, trabalho primoroso de seu pai, Carmine Coppola (1910-1991), vem em socorro do resultado final, remetendo quem assiste ao melhor do cinema autoral, pleno de sucessos e malogros, mas pujantemente altivo.


Filme: Trovão Azul
Direção: John Badham
Ano: 1983
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10