Impactante e desorientador, um dos filmes mais brutais do cinema está na Netflix e não te deixará desviar o olhar Divulgação / Roadside Attractions

Impactante e desorientador, um dos filmes mais brutais do cinema está na Netflix e não te deixará desviar o olhar

O homem não abdica de suas obsessões, em muitos casos a única coisa que lhe sobra ao cabo de toda uma vida de desilusão, sonhos frustrados e medos que refugiam-se nos meandros mais intrincados da alma, não se dão por vencidos e voltam à carga sempre que notam uma instabilidade qualquer, como um vírus oportunista que ataca seu hospedeiro ao menor sinal de baixa no sistema imunológico. Uma vez aberto o flanco, é quase impossível conter a horda de invasores que parte para cima do organismo saudável valendo-se de anos de um resguardo meticuloso, ao longo do qual pôde estudar em detalhes de que maneira penetrar suas entranhas sem fazer alarde, acomodar-se, ir surrupiando-lhe os melhores nutrientes a fim de ganhar força, alimentando uma superestimada esperança de tomar-lhe o lugar. Este é o grande erro desses seres primitivos, habituados a crescer em ambientes favoráveis apenas para eles: não chegam à inferência, de uma obviedade escandalosa, que relaciona o avanço do parasita à morte do sistema que lhe dá guarida. Ou seja, há um limite para o arrojo de quem nos quer mal.

Em “71 — Esquecido em Belfast”, o francês Yann Demange trata os conflitos étnico-religiosos entre britânicos e norte-irlandeses como um câncer que demanda terapia intensiva, ainda que nunca se possa saber com certeza se todo o esforço há de funcionar. As hostilidades da Irlanda do Norte para com o Reino Unido já contam cinco décadas, mas, claro, remontam a um tempo quase perdido na lembrança. Ainda que não se tenha uma definição quanto ao preciso começo das ofensivas, chamadas recorrentemente de The Troubles, ou “os problemas” — os historiadores se dividem entre o surgimento da Força Voluntária de Ulster, como a Irlanda do Norte também é conhecida, em 1966; a marcha em defesa dos direitos civis em 5 de outubro de 1968; a Batalha do Bogside, em 12 de agosto de 1969; e, por fim, o envio das tropas inglesas, em 14 de agosto de 1969 — Demange escolhe centrar seu trabalho em 1971, momento de grande turbulência na história do Reino Unido, com efemérides como a entrada do país no Mercado Comum Europeu, em 21 de maio, por um lado, e a perda de mais uma de suas colônias, o Bahrein, em 14 de agosto, por outro.

Quanto ao filme em si, o diretor deslinda o roteiro de Gregory Burke de modo a apresentar um breve apanhado da atuação dos rebeldes norte-irlandeses, sendo ainda mais lacônico quanto as razões que levam as duas frentes a se baterem num conflito cruento, cuja violência é imperdoavelmente negligenciada pela história. Jack O’Connell (sempre ele!) dá vida a Gary Hook, um soldado raso britânico cujo grupamento foi destacado a Belfast, capital da Irlanda do Norte, para integrar a missão encarregada de reportar um episódio de violência de natureza especialmente bárbara. Numa das tantas batalhas entre os dois exércitos, em que é praticamente impossível distinguir os norte-irlandeses dos guerreiros da rainha tamanha a semelhança de compleição, cor de pele e um jeito muito característico de ver o mundo e a política — a única grande diferença mesmo é o sotaque dos nativos, ainda mais austero e gutural que o dos ingleses —, Hook fica para trás, padecendo de um corte profundo no abdômen, até que, muito tempo depois, seu desaparecimento fomenta o rebuliço da imprensa da Inglaterra, desde já dotada da ferocidade um tanto peculiar dos tabloides.

À primeira vista, “71 — Esquecido em Belfast” dá um gosto de revival de produções congêneres que entraram com todo o mérito para o anedotário cinematográfico, a exemplo de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg, mas a comparação morre no ovo por alguns motivos. A despeito das restrições orçamentárias, problema que nem de longe deteve os delírios bélico-fílmicos de Spielberg, Hook é só um pobre-diabo, em nada semelhante ao protagonista do longa de há um quarto de século. Assim mesmo, o vigor cênico de O’Connell valeu, com muita justiça, a lembrança e o reconhecimento do Festival Internacional de Cinema de Toronto e, quem diria!, do próprio BAFTA, a Academia de Britânica de Cinema e Televisão. Território conquistado pelos valentes Jack O’Connell e Yann Demange.


Filme: 71 — Esquecido em Belfast
Direção: Yann Demange
Ano: 2014
Gêneros: Guerra/Thriller/Drama/Ação
Nota: 9/10