Filme na Netflix não é tão inteligente quanto gostaria de ser, mas é bom o suficiente para tirar seu fôlego Divulgação / Universal Pictures

Filme na Netflix não é tão inteligente quanto gostaria de ser, mas é bom o suficiente para tirar seu fôlego

A guerra contra o terror tem levado diretores de Hollywood a um dilema estimulante, para o cinema e para o público. Nunca se sabe se a ofensiva retórica dos filmes sobre essa matéria deve ater-se à natureza puramente científica da guerra, investigando suas causas e apostando em possíveis soluções ou, como em “O Reino”, tem mesmo é de ir para cima e marcar território, deixando tudo muito às claras, definindo perfeitamente quem são os mocinhos e os vilões e entabulando uma verdadeira profissão de fé acerca do sagrado direito à defesa de democracias frente à abjeção em seu estado mais insano e bestial. Os atentados promovidos por fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda, fundada e gerida com mão de ferro pelo saudita Osama bin Laden (1957-2011), em 11 de setembro de 2001, acabaram por se constituir um ponto de virada na carreira de Peter Berg, decisão talvez orgânica de um artista agastado com os rumos trágicos de seu país, mas nunca livre de especulações nada lisonjeiras a respeito do potencial lucrativo dessas produções, o que não deixa de ter algum embasamento na realidade. Afinal, o show não pode parar.

“O Reino” não faz nenhuma menção ao 11 de Setembro, mas, evidentemente, é implausível se juntar na mesma história terrorismo, teocracias cínicas e sanguinárias, Oriente Médio, disputas internacionais por petróleo e a atuação de tropas americanas para muito além de suas fronteiras sem que restem explícitas as estratégias de Bin Laden et caterva no intuito de subjugar os ditos infiéis, os depravados ocidentais que estudam, trabalham, vão ao teatro, ao cinema, à praia, à boate, namoram, casam-se, consomem, vivem, enfim, sem esperar o beneplácito de doutrinas religiosas, muito menos de uma em específico, com que não têm qualquer identificação, adulteradas a fim de, justamente, impor suspeitas vontades. Na introdução, vai ficando ainda mais claro que o que Berg pretende mesmo com seu filme é erigir uma metáfora de alcance estendido sobre a pulsão de morte que se oculta por trás de visões de mundo feito a de determinado braço do islamismo, uma deturpação sociopolítica que jamais há de voltar para a caixa outra vez, como o diretor mostra na introdução.

A unificação da Arábia Saudita, o reino a que alude o título, em 23 de setembro de 1932, por Abdalazize ibn Saud (1876-1953), faz da península arábica a terra por excelência dos enfrentamentos movidos por questões religiosas no mundo. Os wahhabis, um rudimento do que se tornariam os terroristas árabes sete décadas depois, espalham-se por boa parte da Ásia Central, graças à dependência suicida que as nações infiéis desenvolvem pelo petróleo, um vício que tem custado cada vez mais caro à humanidade e um problema ainda sem solução genuinamente viável sob a perspectiva econômica. Matthew Michael Carnahan, diretor do ótimo “Mosul” (2019), junta num texto rico essas primeiras caudalosas impressões à atuação das forças de segurança americanas em Riade quando da investida de Bin Laden à monarquia saudita, que o chefe da Al-Qaeda tinha por americanófila, cujo efeito prático e mais ousado foi o ataque a uma base dos Estados Unidos na capital saudita, que redundou na morte de militares e civis de ambos os países. Nesse ponto, aparecem os salvadores do reino, com a contraofensiva patrocinada pelo Senado.

Aqui, já não há mais em Jamie Foxx nenhum traço do dandismo de Ray Charles (1930-2004), protagonista da delicada biografia musical de Taylor Hackford, pela qual Foxx ganhou o Oscar de Melhor Ator. Malgrado Ronald Fleury, o oficial a que dá vida em “O Reino” seja um homem sutil, Foxx revela que seu personagem logo se contamina, até sem querer, do espírito revanchista que paira sobre toda criatura naquelas lonjuras de areia e vento, onde qualquer sombra de futuro é imediatamente tragada pelos parasitas da dinastia Saud, ativos até hoje. A joia da Coroa no filme é, sem dúvida, a parceria acima de toda veleidade entre o numeroso elenco, no qual destaca-se Ali Suliman como o sargento Haytham, uma tentativa de Berg de convencer a plateia de que a guerra é democrática: perdemos todos.


Filme: O Reino
Direção: Peter Berg
Ano: 2007
Gêneros: Ação/Drama/Thriller
Nota: 8/10