Filme ganhador do Oscar, com Al Pacino, e considerado um dos mais belos do cinema está na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Filme ganhador do Oscar, com Al Pacino, e considerado um dos mais belos do cinema está na Netflix

Há maneiras e maneiras de se ser infeliz, e o tenente-coronel Frank Slade conhece boa parte delas. Num dos papéis mais abstrusos e saborosamente desconfortáveis de uma carreira vitoriosa desde sempre — e que seguiu assim, a despeito das diatribes de alguns críticos, ensopadas na baba da inveja —, em Perfume de Mulher” Al Pacino incorpora Slade em suas minudências mais particulares. Cego depois de uma atitude impensada da qual ele e apenas ele fora o culpado, se já não escreviam ao coronel, a partir do momento desditoso em que mergulha num abismo da mais profunda melancolia, encerrado num calabouço escuro onde luz nenhuma chega, esse homem patologicamente sozinho conforma-se em beber e esperar que os dias se sucedam uns aos outros, até que tudo, enfim, se desvaneça. Como perdição nenhuma se abate sobre o gênero humano sem que traga junto indícios de como se vai sair da enrascada dos dilemas da existência, Slade não quer deixar a lama em que chafurda mais e mais, com gosto, todavia tem consciência de que abandonar seu romantismo quase tolo, sua picardia, seu humor sempre pautado por um cinismo matador e, claro, a ironia autopiedosa é a passagem do caos para o inferno. E ele está bem onde se encontra, obrigado.

Num dos textos mais narrativamente bem construídos do cinema, Bo Goldman explora todos os domínios de um personagem marcado pela dialética. Ao mesmo tempo em que ama a sobrinha Karen, interpretada por Sally Murphy, não se perdoa por ser forçado a viver na edícula adjacente à casa onde ela vive com o marido Danny Rossi, de Michael Santoro, e os filhos do casal. A passagem por esse núcleo, rápida demais — quiçá o único defeito do roteiro de Goldman —, explica muito do que se vai assistir no miolo da história, quando Slade tira da cartola passagens de primeira classe, Suítes no Waldorf Astoria de Nova York e hambúrgueres a 24 dólares na melhor companhia de que alguém poderia dispor. Enquanto isso, tudo vai irrepreensivelmente bem na vida de Charlie Simms, o garoto pobre de Gresham, no Oregon, noroeste dos Estados Unidos, que consegue uma bolsa de estudos no Colégio Baird, até que uma travessura com o Jaguar do diretor Trask, de James Rebhorn (1948-2014), ameaça colocar tudo a perder. Num lance dramatúrgico tão ousado quanto engenhoso, o roteirista catapulta Chris O’Donnell — você tem feito falta no cinema, cara! — para o centro do palco, e Charlie liga esses dois núcleos aparentemente tão díspares entre si ao ser quase chantageado por Karen a pajear o coronel pelo fim de semana em que os Rossi ficarão fora.

Naturalmente, a personalidade irrequieta de Slade preparava surpresas para esse interlúdio, e de alguma forma o coronel pressentia que Charlie seria contratado e embarcaria com ele para a grande viagem, talvez a última. Pacino transita com suavidade por entre as avenidas estreitas demais de seu personagem, aproveitando todas as chances que o diretor Martin Brest lhe concede para adicionar um novo pigmento à gigantesca tela com que Slade o presenteia. No jantar de Ação de Graças na casa de W.R., o irmão mais velho vivido por Richard Venture (1923-2017), o ator dirime qualquer possível reserva que o público ainda possa ter quanto à moral de Slade, servindo-se de Bradley Whitford na pele do sobrinho Randy, o único capaz de lhe dizer verdades mais inconvenientes que o velho, o escada perfeito.

A memorável cena do tango numa pista de seis por nove, ensanduichada por mesas de um lado e a orquestra do outro é apenas o detalhe fetichista de uma das melhores produções já realizadas por Hollywood. O carisma sutil de Gabrielle Anwar como Donna, a garota-propaganda ideal para os sabonetes Ogilvie Sisters, aliado à técnica e à segurança de Pacino preparam o terreno para abalos dramáticos severos, contidos, por evidente, pela força pundonorosa de Charlie. “Perfume de Mulher” volta ao início com uma sequência, essa, sim, genial, em que os dois protagonistas, separados por uma geração, deixam lições para além do que se pode ver. Este é, sem dúvida, um filme multissensorial.


Filme: Perfume de Mulher
Direção: Martin Brest
Ano: 1992
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10