Filme com Mel Gibson, na Netflix, fará você se contorcer no sofá e não o deixará piscar por 88 minutos Divulgação / SND Films

Filme com Mel Gibson, na Netflix, fará você se contorcer no sofá e não o deixará piscar por 88 minutos

O mundo pode mudar o quanto quiser, mas uma coisa é garantida: filhos sempre darão trabalho a seus pais, a despeito da idade. Por óbvio, quanto mais inexperientes e vulneráveis forem os filhos, mais preocupação há de vir à tona, como gêiseres cuspindo um jato colérico de água fervente de tempos em tempos, causando pequenas inundações e escaldando quem quer que esteja a sua volta. Como não existe nada na vida que não possa ficar pior, a tarimba paterna é de pouca valia e por mais que pais, inspirados por suas próprias experiências desditosas, façam determinadas recomendações a seus rebentos, ávidos por se inebriar da seiva venenosa que escorre de todas as árvores do imenso pomar chamado juventude, eles têm de dar suas próprias cabeçadas, cometer as sandices que só eles mesmos poderiam cometer e, claro, se haver com todas as consequências, malgrado seus pais, como sói acontecer, queiram estar sempre por perto, nem que seja para sofrerem junto. Parece não existir limite para quem deseja fazer seu amor ter algum efeito prático e se transformar no escudo com que aquelas criaturas, até outro dia seres indefesos e puros, podem se defender dos golpes certeiros do destino, um padrasto maldoso e inexplicavelmente ferino.

“Herança de Sangue” reproduz com brilho grande parte dos lugares-comuns vistos na infinidade de produções que também exploram vivências conturbadas de pais e filhos, muito especialmente aqueles que suportam o peso de uma biografia acidentada, repleta de passagens sobremaneira acerbas. O francês Jean-François Richet faz questão de lançar toda a luz sobre a instabilidade moral da composição de seus personagens centrais, pai e filha subitamente envoltos numa bruma de violência e crime, como se dá na vida de tipos assim sem nenhuma surpresa. Amparado pelo roteiro escrito por Andrea Berloff e Peter Craig, baseado no romance homônimo deste último, Richet desenvolve os conflitos que circundam esses dois infelizes fazendo com que a cena se divida ora em um, ora na outra, com espaço o bastante para diálogos que usam o comentário político de modo sensato, corajoso, engraçado e, principalmente, reflexivo.

O diretor abre seu filme mostrando cartazes estampados com a foto de uma garota desaparecida, como nos faroestes. Na sequência, surge o rosto de Lydia, o mesmo que consta das papeletas, que compra munição, chiclete e tenta pegar também um maço de cigarro, mas é barrada pela senhora que opera o caixa, porque nota que a garota é menor de idade e lhe pede o documento. Essas pequenas críticas ao American way of life pipocam ao longo dos magros (mas vigorosos) 88 de projeção, distribuídas em situações que aos poucos transmitem a angústia fundamental por trás dos dois protagonistas. Lydia, a pequena delinquente de Erin Moriarty, é impedida de comprar os cigarros, mas pode levar quantos projéteis quiser, o que dá uma pista da argúcia do trabalho de Berloff e Craig. Lydia saca de um bolo de cédulas amarfanhadas, paga a conta e se dirige a um carro onde três homens a esperam, seu namorado Jonah, vivido por Diego Luna, entre eles. Os quatro se deslocam para um assentamento em algum lugar recôndito do sul da Califórnia, onde todos os moradores trabalham como laranjas do narcotráfico mexicano, escondendo armas e drogas sob a aparência de um lar pacato e insuspeito. A própria Lydia fora acabara nas mãos de Jonah dessa forma, iludida pela falsa chance de desfrutar de uma vida próspera sem a necessidade de pegar no pesado depois de ter brigado com a mãe anos antes.

Na esteira da primeira grande reviravolta do enredo, quando Lydia hesita em cumprir uma ordem do namorado e situação degringola para a origem do anticlímax a ser apresentado na reta final, vem a deixa para que entre em cena o personagem de Mel Gibson, em forma como nunca. Seu John Link, um ex-presidiário em liberdade condicional vivendo no trailer onde defende algum dinheiro como tatuador, é, enfim, lembrando pela filha que, na prática, exige que ele abdique do pouco que conquistou — inclusive do período de sobriedade ao cabo de uma vida de bebedeiras e festinhas muito bem abastecidas de cocaína e heroína, como o próprio ator durante algum tempo — e embarque com ela numa jornada de danação e mais crimes.

“Herança de Sangue” não passa muito disso e, ainda assim, impressiona a afinação entre Moriarty, Gibson e Richet, que extrai de suas estrelas desempenhos magníficos, valorizados por diálogos cortantemente sagazes, como a conversa sobre imigração, discriminação racial e economia entre pai e filha, que poderiam ter ido longe se houvessem tido a chance, ela, principalmente. Escapando de circunstâncias cujo risco se permite apenas imaginar e de falsos amigos como o neonazista interpretado por Michael Parks, tudo o que passa a interessar a esse homem em busca da redenção definitiva (e de um pouco de sossego, se possível) é salvar a filha de uma vida como a sua. Mas até os poderes de um pai têm limites.


Filme: Herança de Sangue
Direção: Jean-François Richet
Ano: 2016
Gêneros: Ação/Drama/Suspense
Nota: 9/10