Brutal e truculento, filme nacional na Netflix vai te deixar na ponta do sofá Divulgação / Vilarejo Filmes

Brutal e truculento, filme nacional na Netflix vai te deixar na ponta do sofá

Desde sempre, a questão fundiária no Brasil é assunto para centenas de pesquisas, teses, documentos oficiais que tentam mapear os gargalos que deixam milhões de cidadãos à margem num processo que deveria ser muito mais célere e efetivo: a inclusão social no campo. “Propriedade” põe o dedo nessa ferida purulenta do jeito mais bestial que se possa, recusando qualquer paralelo acadêmico com a obra do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), por exemplo, um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve — e que agora, passados noventa anos da publicação de “Casa Grande e Senzala” (1933), sua obra máxima, experimenta um processo de cassação devido à interpretação torta de coisas que ele jamais disse.

Daniel Bandeira, conterrâneo de Freyre, situa seu filme num Pernambuco congelado no tempo, uma terra em que desavenças entre fazendeiros e trabalhadores rurais são resolvidas a bala e a foice, numa sucessão de enganos que contribuem para que o país não saia nunca da letargia moral e do atraso econômico que nos contemplam há quinhentos e poucos anos. Bandeira destaca boa parte desses imbróglios em seu roteiro, mas certo de que deve mesmo é concentrar-se na torpeza que se derrama sobre todos personagens, como a chuva envenenada que contamina o solo e o alimento que não sacia a fome de ninguém.

Tereza é uma mártir com todas as lamentações a que teria direito. Na abertura, a edição de Matheus Farias mostra essa mulher patologicamente fragilizada feita refém por um homem no meio da rua, até que um dos atiradores de elite destacados para a ocorrência acerta a cabeça do bandido, pintando de vermelho o muro atrás dos dois. Dias mais tarde, ainda digerindo o trauma, Roberto, o marido, insiste em passar com ela uns tempos nosítio da família no interior, malgrado ela só quisesse enfurnar-se sob as cobertas, de preferência sozinha.

Embora carregue demais nas tintas da violência já na primeira cena, e arraste a narrativa para um andamento farsesco que passa a defini-la, o diretor descortina elementos que, com muita sutileza, explicam a aridez daquelas duas almas, numa espécie de competição para saberem quem primeiro joga tudo para o alto. Malu Galli encarna esse espírito sacrificado de modo a deixar nadando nas entrelinhas que o tal sequestro foi apenas a gota d’água, que vinha desmoronando quiçá há alguns anos e ninguém, nem Marília, a filha com quem parece ter o último e tênue vínculo que a segura neste mundo, se dera conta. Bandeira comete um engano ao preterir esse pequeno núcleo familiar e centrar todas as suas energias no violento confronto entre Roberto e seus subordinados na tal propriedade, do qual Tereza participa de modo obliquo, de dentro do automóvel blindado que o marido comprara especialmente para a viagem. 

Onipresente, a figura vigorosa de Tavinho Teixeira alinhava os momentos de tensão do longa com aquele propósito original de Bandeira, discutir um problema crônico na história do Brasil, tão conhecido quanto ignorado. Nos segmentos com o meio agrário por pano de fundo, a dona Dulce de Amara Rita Magalhães, rouba a cena, com uma ternura que não se sabe se não esconde uma raiva primitiva e uma sede por reparação. Sádico, “Propriedade” escancara a doença social de um país enquanto faz questão de deixar anotada sua incapacidade de oferecer respostas (e muito menos saída) para o labirinto de perversões de cinco séculos que é o Brasil.


Filme: Propriedade
Direção: Daniel Bandeira
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 7/10