Se viver já parece com uma aventura sem que tenhamos de fazer nada, esse aspecto meio farsesco, até onírico, da vida recrudesce nos momentos em que somos confrontados — primeiro por nós mesmos; não muito depois por quem quer que nos rodeie — acerca do que entendemos como virtude ou vício. Ninguém tolera ser obrigado a admitir fracassos de qualquer ordem, mal-estar cujo controle pode ser bem-sucedido mirando-se as vantagens futuras de um recuo temporário. Se o homem pudesse ser cristalizado numa imagem, esta seria a de uma coroa, símbolo máximo do poder em sua constituição mais tirânica, emulação imediata da superioridade divina frente à ignorância, à prepotência e ao consequente escombro moral dos homens. Pelo desejo de uma autoridade torta, despropositada, imerecida, indivíduos de todas as origens, sangues, culturas e estratos sociais matam-se uns aos outros, perpetuando a maldição do pecado original. O homem é mesmo o animal mais trágico da Criação — e o que se sente mais cômodo nesse melancólico papel.
Saber-se miserável em meio à natureza, pantagruélica e caótica, a seus pares e a si próprio de nada vale ao gênero humano, condenado a repisar velhas práticas e desenterrar os arcaicíssimos costumes que o matam, mas não sem antes submetê-lo a todas as sevícias que a crueldade do homem mesma é capaz de inventar. Não obstante nossos planos de dominação fazerem água e irem ao encontro da insensatez da vida com toda a violência, continuamos impassíveis no desprezo aos sinais, avançando contra a lógica, aplaudindo despautérios, achando graça da falta de sentido, mas nos surpreendendo com as consequências, sempre eivadas do horror mais monstruoso. Com “Como Virei Gângster”, o polonês Maciej Kawulski inicia uma espécie de registro da história informal de seu país, entorpecido pela roda viva de corrupção, degenerescência de princípios e a ubiquidade de expedientes incorporados pelo estado paralelo que sói instalar-se em todos os rincões do planeta em circunstâncias assim, do proxenetismo ao narcotráfico, passando pela lavagem de dinheiro e pela sonegação tributária. Kawulski enfronha-se na arqueologia social da Polônia contemporânea de modo a escancarar a ruína das instituições quando da debacle do comunismo na União Soviética, a partir do final dos anos 1980, apenas oficializada em 26 de dezembro de 1991.
Essa paródia da jornada de uma Polônia pós-moderna congelada no tempo ao cabo de 74 anos, em se considerando a tomada do poder imperial na Rússia czarista pelos bolcheviques, com a Revolução de 1917 — ou 93, se entrar na conta a fundação do Partido Comunista soviético, por Lênin —, ganha corpo com o personagem de Marcin Kowalczyk, essencialmente dostoievskiano em sua natureza lastimável, a ponto de nunca lhe conhecermos o nome. Kowalczyk, o gângster do título, cresce num lar católico numa época que regula com a da assunção de Karol Józef Wojtyła (1920-2005) ao trono de Pedro, o que deveria interferir na condução que escolhe dar a sua vida. Na introdução, o roteiro de Krzysztof Gureczny é competente em explorar essas pílulas da vida doméstica do protagonista, confrontando-as com o destino patologicamente imediatista que almeja. A dada altura, o espectador nota que esse mafioso convicto, mas algo involuntário, perde-se nos próprios desejos, confirmando o niilismo do alemão Schopenhauer ou a teoria da liquefação das relações humanas e do próprio homem, do patrício Zygmunt Bauman (1925-2017).
O cinismo de Kawulski sobre a fratura sociopolítica da Polônia continua em “Como Me Apaixonei Por um Gângster” (2022), no qual amplia sua análise a respeito da interferência de governos e desgovernos, de direita e de esquerda, em sua pátria. A força da mensagem, contudo, transcende fronteiras e se constitui um aviso perene e sempre cheio de urgência acerca do amor incondicional, de uma mulher por um criminoso ou de delinquentes de todos os coturnos pelo poder.
Filme: Como Virei Gângster
Direção: Maciej Kawulski
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 7/10