Filmes demoram muito tempo para ser concluídos, demandam muita mão-de-obra, muitos braços fortes o bastante a fim de carregar toneladas de equipamentos e profissionais qualificados para operar os tantos softwares que botam uma história diante dos olhos de espectadores do mundo inteiro nas telas dos cinemas. Antes da pandemia de covid-19, a indústria já vinha passando por transformações profundas. As salas de projeção deixaram de uma vez por todas de representar o território por excelência do cinema. Também elas tiveram de se sujeitar ao ostracismo graças à dialética da tecnologia, que promove mil progressos, mas altera os costumes de tal forma que nem nos apercebemos do quão mudado se nos apresenta o novo cenário, apenas absorvemos a nova conjuntura e vamos em frente. Evento parecido já havia se dado ao longo dos anos 1990, quando da ascensão das igrejas evangélicas, que passaram a ocupar teatros e cinemas, migrados para os grandes complexos comerciais. Agora, os próprios shoppings se tornaram a bola de vez e vão cedendo lugar às plataformas de streaming. À medida que cessa tudo o que antiga musa cantava, nos habituamos às crueldades do admirável mundo novo e louvamos as vantagens que ele igualmente traz. Ferramentas como a Netflix se tornam as grandes divulgadoras de filmes que, sob o outro paradigma, restariam por completo ignorados, ou pelo orçamento tão apertado a ponto de não sobrar muito para a distribuição, ou pelo caráter espinhoso do roteiro.
A quantas humilhações uma mulher, oriental, já no ocaso da existência — e bem-sucedida — precisa se submeter a fim de se enquadrar, de não ferir as susceptibilidades alheias, incluindo-se aí as das próprias filhas, mimadas, rudes, injustas? Seria pedir muito uma velhice tranquila, sem maiores sobressaltos, assistida por quem deveria se sentir obrigada a lhe devolver um pouco da dedicação que recebera? Depois de comer o pão que o diabo amassou nas mãos de um marido mulherengo e negligente, Lin Shoyng consegue virar o jogo: de vendedora ambulante de rolinho primavera torna-se dona do próprio negócio. Trinta anos depois, ele volta, mas pouco mais que um espectro: está à morte, endividado, contando apenas com a nova companheira. As filhas ficam a par da situação do pai e passam a ajudá-lo, mesmo depois de morto. Coagem Lin a bancar o funeral do agora ex-marido, o que lhe reserva surpresas desagradáveis, como receber a amante dele sem nem mesmo saber de quem se trata. Muitas vezes, por alguma paz, se concorda em pagar um preço alto demais, abusivo, escorchante. Principalmente quando já não se tem mais a juventude por alento.
O que chama mais a atenção em “Antonia: Uma Sinfonia” é saber que esta é uma história real, leia-se possível. O filme, escrito e dirigido por Maria Peters, uma mulher — e isso faz, sim, toda a diferença —, pontua por alto a trajetória profissional da biografada, a maestrina holandesa radicada nos Estados Unidos Antonia Brico (1902-1989), dando ênfase maior à relevância de suas conquistas, o que deixa o público meio perdido no começo, mas à vontade para ir a fundo e conhecer um pouco mais sobre a carreira de Antonia por si só. Logo vai se saber que ela tornou-se mundialmente famosa e reconhecida ao ser a primeira regente mulher de uma orquestra, a Filarmônica de Berlim. Para isso, não pôde nunca descuidar da formação acadêmica, obsessão que um homem com o seu talento talvez não tivesse. Frequentou a Oakland Technical High School, em Oakland, onde se graduou facilmente, contando com a vasta experiência que já tinha com o piano. Tornou-se também a condutora da Orquestra Sinfônica das Mulheres, iniciativa sugerida por ela, depois batizada Orquestra Sinfônica Brico. A garra de Antonia permitiu que chegasse ao posto mais alto da Orquestra Filarmônica de Nova York. Tantas flores, claro, trariam alguns espinhos. A mãe de Antonia, que fora adotada ainda em tenra idade, parecia, à luz da tirada de Antonio Carlos Jobim (1927-1994), outro grande maestro, não lhe perdoar o êxito, e a relação das duas, antes afetuosa, tornou-se fonte perene de conflitos. O relacionamento amoroso com Frank Thomsen, tratado erroneamente como uma espécie de benfeitor de Antonia ao “permitir” que ela seguisse se apresentando, também é abordado, e de sua inclusão no enredo pode-se tirar conclusões o seu tanto reveladoras. “Antonia: Uma Sinfonia” é exatamente isso, uma junção de acordes dissonantes em muitas ocasiões, como sói acontecer na vida de qualquer um, artista de renome ou não. E, não, o filme não se presta a isso, mas também ganha força ao apresentar, pela verve da mensagem, um discurso a favor da igualdade de gêneros.
Dramas de guerra geralmente rendem histórias memoráveis. É o que se vê em “A Trincheira Infinita”, cuja direção firme de Aitor Arregi, Jon Garaño e José Maria Goenaga proporciona ao espectador uma experiência comovente, graças à junção de diversas visões para um mesmo tema já na introdução. O clímax do filme está justamente no princípio, se espraiando com gradações de intensidade até o meio, quando a dinâmica da história de recém-casados que têm de driblar o caos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), declarada apenas alguns dias depois da cerimônia — conflito sobre cujas motivações não sabem quase nada, aliás —, vai se condensando, se amolengando um pouco, e o olhar e a expectativa do público já estejam treinados. A sensação de aprisionamento dos dois protagonistas é transmitida com exímia competência pelo trio de diretores e, apesar de previsível, a narrativa nunca deixa de ser envolvente.
Em “Durante a Tormenta”, o diretor Oriol Paulo continua firme em seu propósito de submeter a narrativa às mais impensáveis reviravoltas, distorcendo a ordem natural do tempo numa história de ficção científica que se bifurca entre 1989, no dia da derrubada do Muro de Berlim, e 2014, 25 anos depois. Os dois caminhos se cruzam quando da precipitação de uma tempestade prolongada, cuja duração deve ser de três dias. A enfermeira Vera, seu marido David e a filha do casal, Gloria, se mudam para uma nova casa. Ao fazer uma faxina, Vera encontra fitas de vídeo antigas, registros feitos por Nico, um garoto que vivia ali com a mãe há muitos anos. A enfermeira faz uma busca na internet e descobre que Nico já morreu, atropelado. Por meio de uma televisão velha, Vera e Nico conseguem ver um ao outro. A fim de evitar sua morte, ela o adverte sobre seu destino, mas, ao acordar no dia seguinte, não reconhece mais sua vida: não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. A viagem no tempo é, na verdade, apenas metafórica. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma pletora de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. Ao longo do enredo, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade, nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Contratempo”, e desenvolve uma questão interessante: o homem se submete ao tempo, mas raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança.
Andy foi mordido por um zumbi e agora está infectado por um vírus mortal. Ele tenta desesperadamente salvar a filha Rosie do mesmo destino e, para tanto, tem apenas 48 horas para encontrar um lugar seguro e assim garantir a vida da menina. A solução talvez seja ir para uma tribo aborígene isolada, mas para poderem ser incorporados ao grupo, ele terá que ajudar uma jovem indígena a vencer um perigoso desafio. Apesar de este ser um filme de zumbis, o roteiro vai mais além e aborda questões não muito assíduas do gênero, como compaixão, perseverança e fé. Andy é o típico herói de tramas desse filão, carismático, confiante e disposto a sacrifícios sobre-humanos quando a vida de quem ama está em jogo.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Lila é uma cantora famosa que não pensava em subir aos palcos outra vez, mas se vê forçada a retomar a carreira por precisar de dinheiro. Pouco antes de sua reestreia, ela sofre um grave acidente e acorda com amnésia. Por isso, a empresária de Lila, Blanca, decide contratar Violeta, uma imitadora anônima da qual toma conhecimento ao assistir a um clipe no YouTube. Violeta é a única que pode ensinar Lila a ser outra vez a grande diva que fora. “Quién te Cantará” não chega a ser um thriller típico, mas a narrativa é envolta por uma névoa de mistério; as duas protagonistas têm um carisma magnético, com a câmera e com os espectadores. Outro ponto alto do filme são as cenas em que Najwa Nimri, que vive Lila, interpreta as canções “Como um Animal” e “Procuro Olvidarte”.
Bônus
Às vezes, os astros convergem, o universo conspira a favor e o cinéfilo, especialmente o que se dedica a cascavilhar filmes no campo árido do mundo digital, se depara com algumas boas surpresas. “Divinas”, da neófita Houda Benyamina, passa batido do grande público, apesar de ter vencido o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Merecidamente, a produção teve o fôlego renovado ao ser indicada ao Globo de Ouro, como Melhor Filme Estrangeiro de 2016. “Divinas” parece uma releitura de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, ao retratar pessoas com uma origem em comum, mas que optam — e perseguem — uma trajetória distinta. Em “Divinas”, há Djigui, o garoto que não se seduz pela vida nem tão fácil do tráfico e se torna um artista, como o Buscapé do longa brasileiro, mas há também Dounia, que aspira à vida de crime e ostentação, à medida que convive com Rebecca, traficante já estabelecida no gueto em que vivem. É claro que a protagonista não tem a mais pálida ideia do que seja viver do tráfico, dos perigos a que se sujeitaria, de que pode se dar mal, muito mal, e que viver à margem da lei é um caminho para o qual não há retorno. Numa conjunção perfeita de roteiro, trabalho de atores, direção, montagem e trilha sonora, Houda Benyamina constrói cenas de impacto, ainda que sutis, e mesmo leves, explorando recursos aos quais o cinema já recorreu infinitas vezes, mas sempre de um ponto de vista inegavelmente original. Como a própria condição humana, “Divinas” é complexo, é denso. Onde floresce a desdita, transborda a graça.