Indicado a 2 Oscars, filme que lançou Kevin Bacon e marcou uma geração acaba de chegar à Netflix

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Numa época em que todo gênero de loucura é permitido — e mesmo estimulado —, em que boa parte das pessoas não tem mais a mínima ideia de civilidade e quanto maior a exposição nas redes sociais, maior a credibilidade que se possa vir a conquistar, um filme que mostra com algum senso de realidade a censura a uma manifestação cultural, ainda que numa cidadezinha reacionária da América profunda, soa francamente patético. Por óbvio, não se poderia fazer tal inferência há quarenta anos, e por essa razão, “Footloose – Ritmo Louco” adquire um sabor de nostalgia ainda mais exótico.

O musical de Herbert Ross (1927-2001) atravessou a década de 1980 como uma lembrança de tempos peculiares, cujos dias aqueles que os viveram sabiam únicos. A pretensa falta de rumo narrativo num longa que se quer um videoclipe sobre adolescentes sem controle num lugarejo qualquer goza da licença poética que se mistura a uma infinidade de histórias daquela era de experimentações que de quando em quando bota o nariz para fora da bruma do passado e volta, mas não com igual potência.

Ren McCormack se muda com a mãe, Ethel, interpretada por Frances Lee McCain, de Chicago para Bomont, na Virgínia Ocidental, e mesmo que a distância física não represente nenhuma odisseia inexpugnável, parece que os dois embarcaram de mala e cuia para o medievo.Depois de um prólogo engraçadinho que mostra pares de pernas masculinas e femininas, de salto alto vermelho, mocassim de couro marrom e tênis de lona, embaladas por “Footloose” (1984), a canção-tema composta por Kenny Loggins, Ren e Ethel são vistos assistindo a um culto numa igreja protestante, e se fica imaginando poderiam estar fazendo ali.

O roteiro de Dean Pitchford frisa o incômodo dos dois, olhando atentamente para a figura no centro do púlpito, um homem de meia-idade, branco, sanguíneo, calvo, robusto, algo colérico, que prega contra as iniquidades do mundo. Ren e a mãe se entreolham um tanto chocados, enquanto o reverendo Shaw Moore, de John Lithgow, esbraveja contra o poder diabólico do rock, que, segundo ele, abre a porta do inferno da bebida e das drogas para a passagem de jovens sonhadores e incautos, como Ren. Algumas cenas à frente, sabe-se que há cinco anos Moore perdera o filho mais velho num acidente de carro. O rapaz havia descoberto o tal de rock ‘n’ roll e desde então virara outra pessoa, talvez possuído por demônios que atendiam pelos nomes de Elvis Presley (1935-1977), Chuck Berry (1926-2017) ou Little Richard (1932-2020).

A filha caçula do reverendo, Ariel, vai pelo mesmo caminho do irmão e esse é outro combustível da ira dita santa de Moore. Ross introduz a nova personagem na ótima sequência em que ela equilibra-se entre o carro em que estão as amigas, entre as quais Rusty, de uma Sarah Jessica Parker recendendo ao fim da adolescência de até outro dia, e a caminhonete de Woody, o rapaz que persegue as moças, personagem de John Laughlin.

A estética dos vídeos recheados de imagens perturbadoras e às vezes sem correspondência com a música que se pretende divulgar volta pouco depois, no momento em que o diretor fecha esse arco e leva todos os garotos para o estacionamento de um diner às margens da rodovia. Lá, Ariel, na pele da irresistível Lori Singer, põe um cassete no toca-fitas e materializa o ritmo louco do título… até ser surpreendida pelo pai. Não demora para que ela conheça Ren e, claro, se apaixone por seu espírito livre e libertário.

Singer dá um colorido inesperado à trama, cuja primeira lembrança remete sempre a Kevin Bacon. A peleja do insólito casal em vencer o preconceito do reverendo Moore e reabilitar o rock em Bomont parece um tolo e adorável conto de fadas, mormente se comparado ao lixo pornográfico dos enredos juvenis deste triste século 21, cemitério dos sonhos que a garotada pensa ter realizado.

O nonsense descomprometido de “Footloose – Ritmo Louco”, na Netflix, deve ficar mesmo na memória, ao contrário do que pensa Steven Spielberg ao ressuscitar em 2021 “Amor, Sublime Amor” (1961), o monumento à ingenuidade de Hollywood erguido por Jerome Robbins (1918-1998) e Robert Wise (1914-2005). Tudo nasce e morre à justa época. Os filmes também.


Filme: Footloose – Ritmo Louco
Direção: Herbert Ross
Ano: 1984
Gêneros: Drama/Musical
Nota: 8/10