Suspense com Keanu Reeves, que acaba de chegar na Netflix, vai te fazer ter arrepios e revirar seu estômago Divulgação / Black Bear

Suspense com Keanu Reeves, que acaba de chegar na Netflix, vai te fazer ter arrepios e revirar seu estômago

Não falar com estranhos é um conselho bastante útil, e não só para crianças. Um pai de família íntegro, doce, trabalhador, até meio acomodado, pode se tornar um alvo ridiculamente vulnerável no momento breve em que precisa abandonar sua rotina de amor e cuidado mútuos e fica por sua própria conta um fim de semana inteiro, tempo que Eli Roth estica a seu talante em “Bata Antes de Entrar”, na Netflix, história com todos os estimulantes clichês dos filmes sobre sujeitos tranquilos que, por um motivo ou outro, se veem rendidos por alguém que julgavam incapaz de atacá-los.

À diferença de um de seus maiores sucessos, “O Albergue” (2005), aqui Roth e os corroteiristas Guillermo Amoedo e Nicolás López situam o terror numa dimensão acessível a todo mundo, como se de fato recomendasse prudência, afinal nunca se sabe onde o diabo quis se esconder. Noções de bem e mal, a propósito, amalgamam-se até que não se distinga mais em que parte começam ou findam, imagem que o diretor reforça ao empregar duas belas mulheres aparentemente indefesas que precisam da ajuda do macho solícito e provedor, fetiche que acerta em cheio plateias as mais heterogêneas.

Evan tem a esposa perfeita, os filhos perfeitos, a casa perfeita, mas por um motivo inescapável tem de passar o fim de semana sozinho. Karen, a esposa artista plástica vivida por Ignacia Allamand, corre contra o tempo para abrir sua exposição em Nova York, mas Roth usa a idílica abertura de forma a cristalizar a ideia de sossego, primeiro com a câmera deslizando pelo firmamento de Los Angeles em plongée, plano bem aberto, até chegar ao palacete no fim de uma colina do que poderia ser Beverly Hills.

Ainda na cama, Evan e Karen tentam avançar em folguedos amorosos, mas Jake e Lisa, de Dan Baily e Megan Baily, irrompem porta a dentro e eles acham por bem continuar na segunda-feira, quando ela estiver de volta. Eles aproveitam o Dia dos Pais e horas mais tarde os três saem e Evan tem o casarão só para si. Raras vezes Keanu Reeves esteve tão confortável num personagem; dando vazão a uma face demasiado íntima de Evan, o arquiteto relembra os anos de DJ num dos tantos clubes hype da Cidade dos Anjos ouvindo música no último volume enquanto trabalha no projeto de uma construção, pensa na vida, saboreia um copo de Sauvignon italiano, queima a erva massuda vendida por uma tal de Vanessa e decerto pegaria no sono minutos depois, não fosse sua audição privilegiada o levar até a porta.

Duas garotas, uma loira e uma morena, lindas e ensopadas de chuva parecem desnorteadas. O taxista relapso com quem não puderam se comunicar direito as levara para o outro lado da cidade, e agora, além de não serem capazes de chegar no horário combinado à festa que iriam, estão ilhadas no território de um desconhecido, à mercê de sua bondade e de seus apetites. Roth brinca com o argumento central de seu longa, moldando-o de jeitos os mais diversos, conduzindo o público para inferências precipitadas e, por conseguinte, enganosas.

Bel e Genesis vão se instalando, se espalhando, e não sem o ingênuo consentimento do dono da casa. Evan apanha o tablet para a  apocalíptica Genesis entre em contato com a anfitriã do convescote para o qual se dirigiam; elas pedem toalhas, ele dá; elas precisam se aquecer, ele recolhe as minúsculas peças de roupa e as põe na secadora; ele chama um carro de aplicativo que indica levar ¾ de hora para chegar. Quantas loucuras se podem cometer em 45 minutos? Genesis e Bel sabem.

Nos próximos dois terços de “Bata Antes de Entrar” Roth se dedica a esgotar toda a maldade que duas ninfetas que se reconhecem diabólicas podem despejar sobre um homem maduro e bem-intencionado, cujo único equívoco foi tê-las acolhido. Roth aperta e afrouxa o andamento da narrativa, dando uma e outra pista de quem são as moças são na verdade. O motorista as aguarda, ao cabo dessa espera até prazerosa, mas Genesis e Bel estão no banho.

Evan vai atrás delas, e é sexualmente assaltado ali mesmo, em cenas de teor erótico suave, que se alongam por quase todos os cômodos. Eles passam a noite juntos, e a partir de então, Lorenza Izzo e Ana de Armas literalmente dominam o enredo, como se vissem em Evan o inimigo do sexo oposto a ser combatido, da mesma forma que a anti-heroína de Carey Mulligan faz em “Bela Vingança” (2020), de Emerald Fennell — com a ressalva de serem elas as vilãs.

Em desempenhos corajosos, Izzo, então esposa de Roth na vida real, e De Armas, incorporam um superego descolado da realidade, castigando o monstro oculto do personagem de Reeves, tão bem-disfarçado que nem ele mesmo descobre. Se Roth se excede sugerindo os abusos sofridos por Bel pelo pai ainda na primeira infância, redime-se com a sugestão de que o mundo virou mesmo um lugar hostil demais para os puros de coração. Que sempre se corrompem, ainda que à força.


Filme: Bata Antes de Entrar
Direção: Eli Roth
Ano: 2015
Gêneros: Suspense/Terror
Nota: 9/10