A comédia romântica, adorável, encantadora e subestimada da Netflix que vale cada segundo do seu tempo Divulgação / Netflix

A comédia romântica, adorável, encantadora e subestimada da Netflix que vale cada segundo do seu tempo

Passamos boa parte da vida tentando entender a razão de certos desencontros, chegando ao extremo de pensar que a existência culpa-nos por atitudes que jamais tomamos. Cada um trata de resolver suas questões mais profundas como consegue, não sem alimentar uma ou outra ilusão de harmonia, consigo e com o vasto mundo que o rodeia, e então “Toscana” passa a fazer sentido.

Competente em trazer para ainda mais perto do espectador essas histórias de família marcadas por tragédias silenciosas, aquelas que, no momento em que eclodem, misturam passado e presente num turbilhão implacável, o diretor Mehdi Avaz frisa situações absurdas mediante cenas delicadas, que não deixam de conter gritos ou socos, mas apenas para que se tenha claro que as feridas precisam cicatrizar, que tudo obedece a uma lógica e segue um ritmo predeterminado. Avaz e seu corroteirista Nikolaj Scherfig envolvem a audiência numa sucessão de emoções aparentemente contraditórias, mas que vão fazendo todo sentido, conforme sabe quem o existir obrigou a ser ferro e fogo, mesmo em tempos de nuvens e rosas.

Theo Dahl administra seu restaurante em Helsingör, no leste da Dinamarca, do modo inverso ao que toca a vida. Ele é um chef renomado, célebre por encontrar sempre novos sabores que se combinam feito mágica, porém há alguns anos seu espírito está congelado, retendo mágoas de um tempo que deveria estar morto. Sem dúvida, a composição esmerada de Anders Matthesen é uma das gratas surpresas do filme; ninguém tem qualquer dificuldade de acreditar que Theo é mesmo um dos melhores cozinheiros já vistos em atividade, graças aos trejeitos bem-estudados de que Matthesen lança mão enquanto arruma um prato de azedinhas vermelhas e polvo, mérito que divide com a direção de arte de Mads Pallisgaard Hansen e sua fileira de panelas de aço escovado, cintilando em meio à brancura daquele ambiente sagrado, onde um mestre impetuoso partilha com seus acólitos os ensinamentos que, talvez algum dia, façam-nos ricos e prestigiados também.

O diretor quebra a autossuficiência de seu protagonista na virada do primeiro para o segundo ato, quando Theo, visando ao investimento de nove milhões de coroas de Zeuten, o playboy vivido por Sebastian Jessen, engole as grosserias do possível sócio, até que, finalmente, joga tudo para o alto. Era esse o gancho de que Avaz precisava para levar a narrativa ao centro da Itália.

George, o pai de Theo, era dono de um restaurante na Toscana, mas como diz a carta que recebera numa tarde de pouco movimento, ele morrera há quase um mês. Ainda que passe longe da sofisticação a que está habituado, o Borghetto Ristonchi tem uma clientela fiel e dá lucros formidáveis, o que vem a ser um argumento bastante persuasivo agora que precisa cobrir o rombo do dinheiro de Zeuten, que voou para outras praças. Incentivado por Merle, o misto de contadora e advogada encarnado por Lærke Winther, Theo vai até lá, e desse ponto até o encerramento, o diretor traça planos na intenção de desarmar esse homem bom, mas um tanto empedernido.

O primeiro contato com Sophia, a garçonete do Ristonchi interpretada por Cristiana Dell’Anna, dá uma pista de como será o antirromance dos dois, um triângulo amoroso destrinchado de um jeito maduro, suave e realista, em cujo terceiro vértice está Pino Conti, que se casa com Sophia, que nunca esquece Theo, que volta para Helsingør, a terra de Hamlet, mas desiste de tudo, e fica de vez sob o sol da Toscana, como no filme de Audrey Wells ancorado por Diane Lane, nutrido pela chama bruxuleante de uma paixão diáfana. Não há soluções fáceis aqui; só o que posso adiantar é que Theo, afinal, se acerta com o pai, em espírito e em verdade. Como na peça mais longa do Bardo de Stratford-upon-Avon.


Filme: Toscana
Direção: Mehdi Avaz
Ano: 2022
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10