Primeiro filme de Héctor Babenco é diamante para o cérebro e está na Netflix Divulgação / HB Filmes

Primeiro filme de Héctor Babenco é diamante para o cérebro e está na Netflix

Alguma coisa de muito especial Héctor Babenco (1946-2016) achou no Brasil, tanto que resolveu ficar. Foi aqui que Babenco, um dos diretores mais sensíveis que o cinema já produziu, começou a se encantar por todas as histórias nas quais ia esbarrando — nem sempre com método, que compensava redobrando a atenção para com detalhes que até poderiam insinuar uma leve paranoia, tamanha a sutileza que encerravam.

Em “O Rei da Noite”, o diretor tem a chance de exercitar uma veia pouco divulgada em sua caudalosa filmografia, que enveredou por dramas de viés assumidamente sociológico, como “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980) e “Carandiru” (2003). Dois anos antes de “O Rei da Noite”, sua primeira ficção, escrevera e produzira o documentário “O Fabuloso Fittipaldi” (1973), sobre o mais novo do clã de automobilistas, de ajudante do irmão, Wilson, a bicampeão mundial de Fórmula 1, e essa pode ter sido a razão de que precisava para reinventar-se e consolidar sua real identidade. Pelo que se vê aqui, tem-se a certeza de que Babenco faria uma carreira sui generis, a de um argentino particularmente enamorado do Brasil.

A história de um burguês ridículo, filho da pequena aristocracia paulistana da primeira metade do século 20, ganha contornos eminentemente românticos, até barrocos, nas mãos de Babenco e Orlando Senna, seu corroteirista, com quem trabalhara em “Iracema: Uma Transa Amazônica” (1975), dirigido por Senna e Jorge Bodanzky. Na verdade, a trajetória de Tertuliano vai na contramão da jornada do Senhor Jourdain, o anti-herói da peça de Molière (1622-1673), encenada pela primeira vez em 1670. Tezinho, apelido entre pueril e humilhante pelo qual chamam o personagem central, inicia a história brincando de boneca com as irmãs mais velhas, deixando-se vestir e maquiar pelas meninas, sem escândalo da mãe, a pacata dona de casa vivida por Yara Amaral (1936-1988).

Aos poucos, deslinda-se o mundo de desalento do garoto, que percebe a ruína do lar paterno, mas ou para autoconsolar-se, ou por comiseração a eles, se cala. O pai, de Emilio Fontana, cede à decrepitude mental, mas a esposa diz às crianças que o marido passa os dias fora a trabalho — embora ele diga que acaba de voltar de um combate na Segunda Guerra Mundial (1939-1945); o que de fato acontece é que o homem está internado num manicômio e só quando foge é que a família sabe dele. Esse é o gancho de que o diretor se socorre a fim de romper a vida adulta de Tezinho, reproduzindo a seu modo a vida do pai, cuja morte soube tomando o café da manhã que a mãe lhe trouxera na cama, antes de ir para o trabalho, uma sinecura arranjada pelo padrinho.

Paulo José (1937-2021), ótimo como sempre, dosa histrionismo e sobriedade na composição do protagonista, o típico estroina que até pode condescender com a ideia de emendar-se em algum momento, porém, ajudado pelo destino, vai deixando-se estabelecer na boemia. Não exatamente bonito, mas um azougue com o belo sexo, Tezinho conquista a prostituta Pupe enquanto planeja voos mais estáveis com Maria das Graças, uma quatrocentona carente.

Marília Pêra (1943-2017) e Vic Militello (1943-2017) encarnam essas duas vidas paralelas de Tezinho, que orbita no universo perfeito dos cafajestes. Depois de um chá de cadeira de Pupe, que a princípio o rejeita no lupanar onde trabalha, os dois saem e, claro, ela se derrete por ele. Já a esfera doméstica é o domínio de Das Graças, com Militello em cenas audaciosas, dramáticas e tragicômicas, que descaem, enfim, para um desfecho mórbido.

Nos dois casos, o que mantém Tezinho junto a essas duas mulheres infelizes é o dinheiro, mas Babenco o redime numa guinada pouco inventiva, mas não menos tocante, avançando algumas décadas e mostrando a velhice melancólica do personagem, até que reencontra Aninha, o grande amor de seu existir vazio, agora também velha, mas ainda sedutora e angelical, como Dorothée Marie Bouvyer a fizera no prólogo.


Filme: O Rei da Noite
Direção: Héctor Babenco
Ano: 1975
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10