Angustiante e provocativo, filme que acaba de chegar à Netflix vai mexer com todas as suas emoções Divulgação / Play Network Studios

Angustiante e provocativo, filme que acaba de chegar à Netflix vai mexer com todas as suas emoções

A África é um mistério que clama por ser revelado. Nollywood, a indústria cinematográfica da Nigéria, faz um trabalho meticuloso, filigranado, de efeitos ora magníficos, ora desapontadores quanto a pôr a nu algumas das grandes e espinhosas questões que o continente é obrigado a atacar hoje, e o tempo comprova que uma boa parte delas não tem nada de original, de estritamente novo. Seis pessoas diferentes entre si, mas partilhando de um mesmo ideal, desafiam a ira de um sistema corrupto em nome de valores como soberania, autoafirmação, honra e uma tal chama que nunca deixa de arder e sofrem por isso pesadas consequências em “Navio de Sangue”, o 28º longa de Moses Inwang.

Voz reverberante e profícua da arte e da cultura nigerianas, o diretor vale-se de metáforas bastante sutis para ao longo de duas horas encantar e convencer o público da urgência de se olhar a África de modo compassivo, solidário, mas também com rigor, uma vez que vem de lá uma porção significativa dos minérios e pedras preciosas, além do petróleo e do gás natural de que a humanidade nunca parou de depender. Inwang amadurece essas discussões a partir de uma trama ágil, cruenta, implacável, determinada a evitar a todo custo romanceações sobre o que quer que seja.

No delta do Níger, as vidas de Abbey, Boma, Degbe, Olotu, Tekena e Oyinbraekemi correm para um só mar. O rio, antes um oásis exuberante em que crianças deixavam-se brincar a tarde inteira e namorados usufruíam de momentos de contemplação e afagos mais dissolutos, agora faz parte de um cenário de guerra, onde um cotidiano de instabilidade política e ebulição social os impele a sair de Waijini, a outrora pacata aldeia, e o cerco metódico das Forças Armadas os obriga a tomar um navio sobre o qual nada se sabe. O roteiro de Musa Jeffery David, Jordan Prosser e Justin Dix retrocede alguns dias a fim de mostrar os irmãos Tekena e Olotu, de Levi Chikere e Dibor Adaobi, enchendo bolsas com seus pertences enquanto a mãe evidencia seu desgosto, mas não consegue fazer nada, nem chorar.

O diretor vai conduzindo a narrativa para a glosa sociológica ao denunciar a condição dos imigrantes que tentam deixar a Nigéria sem garantia de coisa alguma, sequer de que chegarão vivos ao lugar que não conhecem, cada qual movido por um propósito. Se Tekena e Olotu se lançam à empreitada vislumbrando chances remotas de juntar dinheiro, Boma e Degbe, de ObinnaOkenwa e David Ezekiel, são os verdadeiros insurgentes políticos, determinados a fugir de represálias por suas posições ideológicas; e Abbey e Oyinbraekemi, os amantes que na introdução burlam a vigilância do pai da moça, grávida, para fugirem juntos, encarnam a parcela de lirismo que cabe, apesar do destino reservar para eles obstáculos humanamente intransponíveis. Sylvester Ekanem e Katerina Atamanencabeçam momentos de providencial romance, inclusive quando são descobertos, e tornam-se reféns de Igor, o gângster russo vivido por Alex Budin.

Acurada sem prejuízo da sensibilidade, a direção de Inwang dá a cada um dos atores principais a chance de brilhar por si e em conjunto, sempre favorecidos pela fotografia pujante. “Navio de Sangue” é outra prova de que o cinema feito na África afirma-se a despeito de patrulhas de estúdios que ostentam visões de mundo desabridamente reducionistas, preconceituosas, a respeito da pluralidade imensa do continente. Há vezes em que as grandes vítimas se cansam, e o caos que pode nascer daí quando todos se sublevarem talvez não possa ser refreado. Um perigo não para a África, mas para o gênero humano.


Filme: Navio de Sangue
Direção: Moses Inwang
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10