Suspense da Netflix, com Julia Roberts e Ethan Hawke, é o filme do momento JoJo Whilden / Netflix

Suspense da Netflix, com Julia Roberts e Ethan Hawke, é o filme do momento

Pelo que se vê nos trabalhos de Sam Esmail, os cavaleiros do Apocalipse estão fazendo um bom trabalho. “O Mundo Depois de Nós”, por exemplo, é uma história em que nota-se abertamente a vontade de se tratar de um assunto que, pelo que se constata, vai ocupar as telas com frequência cada vez maior, o que pode acabar fazendo com que o tiro saia por onde não deveria. Esmail é dos raros diretores que conseguem juntar num mesmo pacote os laivos de autodestruição do homem, aparentemente só aparentemente — distantes da vida como ela é, a questões muito mais próximas do chão da realidade, como o abominável e onipresente racismo, palavra que desafia a lógica, e que também por isso deveria ter caído em desuso. Como sabe que é inútil mudar os nomes das coisas sem que se mude o jeito de se lidar com elas, Esmail investe numa abordagem categórica, quase panfletária, deixando que reverbere a pena mordaz de Rumaan Alam, autor do romance homônimo do qual o filme é adaptado. E o resultado escandaliza.

Amanda Sandford personifica o desalento niilista que ronda o nosso tempo. Pela introdução amena, ninguém suspeita de que ela odeia sua vida num apartamento de luxo no Brooklyn — ainda que com paredes de um azul fortíssimo, descascando e rasgadas por sulcos incômodos, mas não é tão surpreendente quando diz, num monólogo preciso, que odeia essa gente que todos os dias sai para trabalhar, a fim de fazer um mundo melhor, e de se melhorar também. Julia Roberts quase monopoliza as atenções ao longo de mais 138 minutos, ao manter o olhar cinicamente perdido a maior parte desse tempo, como se desde o princípio soubesse do que há de acontecer nos instantes finais da história roteirizada por Esmail.

A fotografia de Tod Campbell, luminosa, mantém o que se vai lendo nas entrelinhas a uma distância segura do macabro, enquanto Roberts faz as honras no que respeita ao texto. Quando Amanda vira-se para o marido, Clay, interpretado por um Ethan Hawke quase dispensável, e lhe diz que acabou de alugar um palacete em LongIsland para que os dois levem os filhos Rose, vivida pela excelente Farrah Mackenzie, e Archie, de Charlie Evans, a passar o fim de semana, não se tem mais dúvidas de que ela não está em seu juízo perfeito, da mesma forma que, diante de um sujeito apalermado como o marido, deve ser dela a última palavra em tudo, até em questões que caberia a ele destrinchar.

Algumas horas depois de instalados, no momento em que tomam sol numa praia da vizinhança, um navio de carga vai a pique. Pouco antes, o Wi-Fi da mansão havia caído, e de pouco em pouco, Esmail faz crescer o aspecto cataclísmico de “O Mundo Depois de Nós”, dando azo a um fino sarcasmo a cerca das patéticas teorias conspiratórias que pipocam aqui e ali com força crescente, até que o humor sinistro cede lugar à questões mais acerbas, de maneira não muito sutil. Ao anoitecer, um homem negro e a filha batem à porta; ele alega ser o dono da casa, explicando que os dois voltaram correndo porque Nova York sofre um apagão persistente, e as autoridades não são capazes de contornar o caos em que a cidade mergulhara.

Amanda não acredita em nada daquilo, a começar pela afirmação de ser um negro o proprietário, mas G.H. Scott não se abala. Mahershala Ali compõe uma dobradinha sempre muito proveitosa com Roberts, com Amanda rendendo-se a muito custo, mas visivelmente obstinada em seus preconceitos, em nome da família, claro. Ruth, a filha de Scott, é suave e refinada como o pai, mas Myha’la sabe a hora exata de fazer com que a autoridade dele valha, e de que jeito. Numa mistura de “Não Olhe para Cima” (2021), o já clássico (e ignorado) pós-apocalíptico de Adam McKay, e “Corra!” (2017) ou “Não! Não Olhe!” (2022), de Jordan Peele, o desfecho parece o último episódio de uma série de televisão, onde a humanidade revela seu lado mais comicamente sórdido.


Filme: O Mundo Depois de Nós
Direção: Sam Esmail
Ano: 2023
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10