O furo jornalístico que impactou o mundo é contado em filmaço digno de Oscar na Netflix Divulgação / Koch Films

O furo jornalístico que impactou o mundo é contado em filmaço digno de Oscar na Netflix

Diretora de “Filhos da Guerra”, “Na Escuridão” e de alguns episódios de “House of Cards”, Agnieszka Holland é uma cineasta polonesa indicada ao Oscar que também assina a direção de “A Sombra de Stalin”, cinebiografia de Gareth Jones, jornalista britânico que viajou para as entranhas da União Soviética para desmascarar o segredo de Joseph Stalin. Baseado em fatos reais, a diegese de Andrea Chalupa toca em feridas que, embora não sejam tão recentes assim, influenciam até hoje a política global e tem relação com a atual guerra na Ucrânia.

Líder russo há 23 anos, Vladimir Putin invadiu recentemente a Ucrânia com o “sonho” de restaurar a idealização glorificada por Stalin do nacionalismo grão-russo. A verdade é que enquanto Hitler matava milhões de pessoas, especialmente judeus, em seus campos de concentração e suas câmaras de gás, Joseph Stalin também fazia milhões de vítimas no Holodomor, a grande fome que se abateu sobre a Ucrânia durante seu regime. Mas é preciso destacar a diferença: o nazismo tinha um programa de extermínio sistemático, enquanto Holodomor foi uma crise de fome generalizada.

Holland, que sempre trabalha em obras bastante políticas, nos dá uma visão ocidental da União Soviética, quando o jornalista Gareth Jones (James Norton), que trabalha como conselheiro do primeiro-ministro britânico David Lloyd George (Kenneth Cranham), decide ir até Moscou como repórter independente para tentar uma entrevista com Stalin sobre o boom na indústria soviética. Dias antes, Jones havia sido alvo de piadas ao afirmar, em uma reunião do alto escalão político britânico, que Hitler, a quem havia entrevistado em um avião, iria iniciar uma guerra. Jones não apenas estava certo, como também havia sido preciso ao cogitar uma aliança com os russos contra os nazistas.

Seguindo os rastros do sucesso econômico de Stalin, Jones chega até a Ucrânia e se depara com Holodomor, uma terrível fome que se abateu no país por conta da política de requisição de colheita de grãos e cereais, deportando e, até mesmo, executando inadimplentes.

Embora a atmosfera de suspense já se manifeste desde os primeiros minutos de filme, a película toma tons mais dessaturados e sombrios quando Jones chega na Ucrânia. A imagem parece até assumir uma escala de cinza, enfatizando a tragédia e o horror que irá se desdobrar na tela.

Dentro do trem, ao tirar uma mexerica da bolsa e descascá-la, Jones é encarado pelos passageiros, que parecem prestes a atacá-lo pelo alimento. Mas a maioria ali é de mulheres, crianças e idosos, que apenas o observam e depois se amontoam em cima das cascas da fruta atiradas sobre o assoalho.

Sabendo que será difícil suportar o frio soviético, ele oferece a um dos passageiros dinheiro em troca de seu casaco. O homem rejeita suas notas e diz que aquilo de nada vale naquele lugar, mas o pergunta se tem pão. Então, Jones abre a mala e retira um embrulho que troca pelo agasalho.

Após descer na ferrovia e durante sua caminhada na neve, Jones se depara com vários cadáveres, que se tornam meros obstáculos ou detritos no caminho, como se a cena já estivesse naturalizada. Um homem conduzindo um carrinho carregado de corpos arremessa um bebê vivo e chorando, que cai no meio do caminho, de volta ao monte, esperando enterrá-lo junto com os defuntos. Jones observa curioso e estupefato os horrores que o cercam, enquanto crianças cozinham e comem os restos de seu irmão morto.

Mas a sensação de perigo não arrasta apenas por causa da fome e degradação generalizada. A vida de Jones está em risco. Nós, assim como o protagonista, sentimos as fungadas de Stalin na nuca. Há alguém à espreita. Mas Jones consegue deixar a União Soviética e lançar seu furo sobre como a economia russa se expande às custas de milhões de vidas. No entanto, o jornalista foi morto em 1935, um dia antes de seu aniversário de 30 anos, por um policial soviético disfarçado.

O filme de Holland lança luz sobre o negligenciado e omitido genocídio ucraniano,  mas também tem um importante ponto de reflexão: a guerra de narrativas. Embora Jones seja um repórter ético que está sempre em busca da verdade e da informação neutra, sem enviesamentos políticos, ele precisa disputar com Walter Duranty, correspondente do The New York Times na Rússia, a credibilidade dos leitores. Duranty desmentiu as afirmações de Jones sobre a crise escondida na URSS e manipulou a opinião pública.


Filme: A Sombra de Stalin
Direção: Agnieszka Holland
Ano: 2019
Gênero: Suspense/Drama/Biografia
Nota: 9/10