Assustador e inquietante, um dos filmes mais desconfortáveis da década acaba de estrear na Netflix Divulgação / Synapse

Assustador e inquietante, um dos filmes mais desconfortáveis da década acaba de estrear na Netflix

Mulheres que sabiam demais, que não dependiam dos homens, que não viam nenhum conflito moral em avançar sobre o que a sociedade lhes interditava já foram hostilizadas, perseguidas, lançadas ao fogo e renasceram das cinzas para fazer um inferno da vida de gente hipócrita, tacanha, verdadeiramente nefasta. Muito ainda vai se falar sobre feiticeiras e seus rituais de encantamento para todos os fins possíveis, e Pierre Tsigaridis dá sua rica ajuda quanto a perpetuar a mística em torno dessas criaturas, metade neste plano, a outra sabe-se lá onde.

“Duas Bruxas: A Herança Diabólica” é a meticulosa jogada com que Tsigaridis estreia como diretor de longas-metragens, e disputando espaço num oceano repleto de tubarões — o que não chega a ser um desafio tão penoso assim de ser superado. Na verdade, seu trabalho presta uma homenagem velada a filmes como “A Bruxa” (2015), levado à tela por Robert Eggers, ou mesmo “O Exorcista” (1973), o clássico do terror de William Friedkin (1935-2023), alcançando resultados originais aqui e ali tanto na embalagem como na substância, malgrado o indigesto amálgama de erotismo e gore já esteja de barbas longas e brancas. O que se impõe em “A Herança Diabólica” é, feito nas produções que serviram-lhe de modelo, o que não é dito.

Em meio ao pré-apocalipse quando da eclosão da pandemia de covid-19, o primeiro longa de Tsigaridis anuncia uma obviedade: crianças também não deixaram de vir ao mundo, e uma delas, na sequência inaugural, desobstrui os pulmões num choro frenético, e o cenário, onde velas bruxuleiam num espaço amplo, não é propriamente sombrio. Uma mulher o toma no colo, e a partir de então, o roteiro do diretor, Kristina Klebe e Maxime Rancon envereda pelo desajuste de um casal às vésperas de se tornarem pais. Sarah está grávida, mas Simon não se lembra e lhe oferece um copo de vinho. O mal-estar entre os personagens de Belle Adams e Ian Michaels chega até quem assiste, que não sabe exatamente o que pensar deles. Nesse primeiro de dois tomos, indissociáveis, uma vez que as protagonistas nutrem um vínculo também carnal, ainda que cada qual disponha de sortilégios bastante particulares.

Uma cidade sob nuvens cinzentas da tempestade furiosa que se avizinha é dominada pelas duas, e os pobres mortais sentem sua influência macabra. A narrativa se desdobra para também cobrir a atuação da bruxa velha, com Marina Parodi encarnando uma figura medonha com o auxílio da maquiagem de Kao Miyamoto, e a veterana sai de cena cedendo lugar a Masha, a neta vivida por Rebekah Kennedy que parece não ter muita certeza quanto aos fenômenos sobrenaturais que manifesta. Na pele de Masha, Kennedy dá vazão à grande capacidade criativa de Tsigaridis de confundir o espectador da melhor forma: valendo-se de sua própria visão de mundo.


Filme: Duas Bruxas: A Herança Diabólica
Direção: Pierre Tsigaridis
Ano: 2021
Gêneros: Terror 
Nota: 8/10