Indicado ao Oscar, um dos filmes mais surpreendentes da história do cinema está na Netflix Divulgação / Splendor Films

Indicado ao Oscar, um dos filmes mais surpreendentes da história do cinema está na Netflix

As cenas iniciais de “Clube da Luta” confundem. Transcorrido quase um quarto de século, o longa de David Fincher causa um incômodo duradouro quanto à compreensão dos padrões a que o diretor se refere, evocando o romance homônimo de Chuck Palahniuk, para que se tenha, afinal, que a intenção aqui é mesmo lançar um manto de dúvida em cima do dito sexo forte e estrangular as falsa certeza que homens temos acerca de nossa habilidade em nos levantar das rasteiras do destino. Essa até pode ser uma verdade, mas parcial — ou a história não teria razão de ser. Toleramos uma pancada leve, um golpe mais pronunciado, uma surra de lavar-nos em sangue, até que a reação se impõe. A adaptação de Jim Uhls frisa toda essa violência do texto de Palahniuk, reservando bastante espaço para inserções filosóficas acerca do que o escritor fala na verdade: a inépcia masculina quanto a processar sentimentos que extrapolem a natureza binária do amor ou do ódio, o que permite ao espectador atingir outras metáforas, ainda mais perturbadores, que talvez nem fiquem assim tão claras na frieza do papel.

É impossível não assistir a “Clube da Luta” e não ser imediatamente assaltado por reminiscências de tesouros do cinema macho a exemplo de “Perseguidor Implacável” (1971), de Don Siegel (1912-1991), ou qualquer dos dramas policiais encabeçados por Charles Bronson (1921-2003), e, por conseguinte, é também difícil não achar laivos de um homoerotismo consciente ou não, quiçá o jeito encontrado por Hollywood para abordar o tema sob uma perspectiva genuinamente viril, como faz Ang Lee em

“O Segredo de Brokeback Mountain“ (2005) seis anos depois, ou Pedro Almodóvar no recém-lançado “Estranha Forma de Vida” — e voltamos ao faroeste de Dirty Harry, ops!, Clint Eastwood. Edward Norton é um homem viciado na adrenalina muito particular do sofrimento, mas não por acaso. Ele não escapa ileso do torvelinho de angústias, tensões e dores psicossomáticas que sufocam-no sem pena, deixando clara sua irrelevância no mundo. Uhls e Fincher são fiéis às escolhas de Palahniuk, e o personagem nunca receber um nome, sendo apenas o Narrador torna o que é contado ainda mais envolvente. Na tentativa de domar sua vulnerabilidade paralisante, o Narrador começa a frequentar reuniões de grupos de apoio; na primeira sessão, conhece homens de meia-idade recuperando-se de câncer nos testículos (a ironia é obrigatória). Homens literalmente sem colhões orbitam o universo do anti-herói de Norton agora, até que uma mulher junta-se ao time. Marla Singer fica sempre a um passo de entrar na vida do solitário convicto, mas, por razões elementares, quem o faz é um homem, sem nenhuma conotação sexual — ao menos não explicitamente. 

O encontro com Tyler Durden aponta o caminho que o Narrador decerto procurava desde o começo. Talvez ele já estivesse também um tanto emasculado, mas Durden inspira-lhe a urgência de resgatar nele o macho adormecido, e a tal agremiação secreta que batiza o filme surge. Brad Pitt encarna o contraponto ideal para Norton, trazendo à luz uma faceta de sua personalidade artística nem sempre explorada e que não decepciona. Sua entrada em cena sepulta de vez qualquer chance da trama retomar sua aura lúdica; principia então um sem fim de mãos que esmigalham rostos sem luva — e milagrosamente terminam sem um osso fraturado —, e, o principal, as elaborações semânticas a respeito da necessidade daquele antro das últimas e inconfessáveis fantasias de marmanjos descorçoados, à procura de si, fartos de tudo. No terceiro ato, “Clube da Luta” envereda por uma vesana farsa sobre o que hoje 

se conhece por anarcocapitalismo, mas é assim mesmo um grande trabalho de Fincher, célebre por tirar grandes enredos de argumentos à primeira vista tolos. O estranho casal Norton-Pitt é até hoje um dos pontos mais altos em rodas sobre a fragilidade do homem pós-moderno, que sempre arruma jeitos tortos de extravasar as tensões de perigosas cobranças, as dos outros e as suas, e esquecer o fracasso o quanto possível. Às vezes são prazeres verdadeiramente bizarros, mas cada um vive como gosta. 


Filme: Clube da Luta
Direção: David Fincher
Ano: 1999
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 8/10