As cenas iniciais de “Clube da Luta” confundem. Transcorrido quase um quarto de século, o longa de David Fincher causa um incômodo duradouro quanto à compreensão dos padrões a que o diretor se refere, evocando o romance homônimo de Chuck Palahniuk, para que se tenha, afinal, que a intenção aqui é mesmo lançar um manto de dúvida em cima do dito sexo forte e estrangular as falsa certeza que homens temos acerca de nossa habilidade em nos levantar das rasteiras do destino. Essa até pode ser uma verdade, mas parcial — ou a história não teria razão de ser. Toleramos uma pancada leve, um golpe mais pronunciado, uma surra de lavar-nos em sangue, até que a reação se impõe. A adaptação de Jim Uhls frisa toda essa violência do texto de Palahniuk, reservando bastante espaço para inserções filosóficas acerca do que o escritor fala na verdade: a inépcia masculina quanto a processar sentimentos que extrapolem a natureza binária do amor ou do ódio, o que permite ao espectador atingir outras metáforas, ainda mais perturbadores, que talvez nem fiquem assim tão claras na frieza do papel.
É impossível não assistir a “Clube da Luta” e não ser imediatamente assaltado por reminiscências de tesouros do cinema macho a exemplo de “Perseguidor Implacável” (1971), de Don Siegel (1912-1991), ou qualquer dos dramas policiais encabeçados por Charles Bronson (1921-2003), e, por conseguinte, é também difícil não achar laivos de um homoerotismo consciente ou não, quiçá o jeito encontrado por Hollywood para abordar o tema sob uma perspectiva genuinamente viril, como faz Ang Lee em
“O Segredo de Brokeback Mountain“ (2005) seis anos depois, ou Pedro Almodóvar no recém-lançado “Estranha Forma de Vida” — e voltamos ao faroeste de Dirty Harry, ops!, Clint Eastwood. Edward Norton é um homem viciado na adrenalina muito particular do sofrimento, mas não por acaso. Ele não escapa ileso do torvelinho de angústias, tensões e dores psicossomáticas que sufocam-no sem pena, deixando clara sua irrelevância no mundo. Uhls e Fincher são fiéis às escolhas de Palahniuk, e o personagem nunca receber um nome, sendo apenas o Narrador torna o que é contado ainda mais envolvente. Na tentativa de domar sua vulnerabilidade paralisante, o Narrador começa a frequentar reuniões de grupos de apoio; na primeira sessão, conhece homens de meia-idade recuperando-se de câncer nos testículos (a ironia é obrigatória). Homens literalmente sem colhões orbitam o universo do anti-herói de Norton agora, até que uma mulher junta-se ao time. Marla Singer fica sempre a um passo de entrar na vida do solitário convicto, mas, por razões elementares, quem o faz é um homem, sem nenhuma conotação sexual — ao menos não explicitamente.
O encontro com Tyler Durden aponta o caminho que o Narrador decerto procurava desde o começo. Talvez ele já estivesse também um tanto emasculado, mas Durden inspira-lhe a urgência de resgatar nele o macho adormecido, e a tal agremiação secreta que batiza o filme surge. Brad Pitt encarna o contraponto ideal para Norton, trazendo à luz uma faceta de sua personalidade artística nem sempre explorada e que não decepciona. Sua entrada em cena sepulta de vez qualquer chance da trama retomar sua aura lúdica; principia então um sem fim de mãos que esmigalham rostos sem luva — e milagrosamente terminam sem um osso fraturado —, e, o principal, as elaborações semânticas a respeito da necessidade daquele antro das últimas e inconfessáveis fantasias de marmanjos descorçoados, à procura de si, fartos de tudo. No terceiro ato, “Clube da Luta” envereda por uma vesana farsa sobre o que hoje
se conhece por anarcocapitalismo, mas é assim mesmo um grande trabalho de Fincher, célebre por tirar grandes enredos de argumentos à primeira vista tolos. O estranho casal Norton-Pitt é até hoje um dos pontos mais altos em rodas sobre a fragilidade do homem pós-moderno, que sempre arruma jeitos tortos de extravasar as tensões de perigosas cobranças, as dos outros e as suas, e esquecer o fracasso o quanto possível. Às vezes são prazeres verdadeiramente bizarros, mas cada um vive como gosta.
Filme: Clube da Luta
Direção: David Fincher
Ano: 1999
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 8/10