Para ser feliz acima da média

Para ser feliz acima da média

Sou pessimista acima da média, mas, me amarro em passarinhos. Por sinal, um deles, um sabiá-laranjeira, se não me engano, arrastou-me preso às suas patas com as gavinhas de um canteiro, dentro do céu de sábado, que era um céu de brigadeiro — pensem num voo doce. Sábado, o melhor dia da semana para quem, como eu, não sabia voar em horário comercial. Todos os dias eram iguais. Diferentes eram os homens.

Do alto, eu e meu pássaro — por defeitos de acumular e querer ter, mas, também por teimosia de querer bem as criaturas, permitam que eu me aproprie nessa história de um ser tão colorido e livre — , avistamos prédios, pontes, casas, carros e a multidão formigando nas ruas. A mil pés, a cidade não parecia tão caótica quanto no trampo da esquina. Ela pulsava mais silenciosa que o meu coração.

Havia silêncio abismal no espaço. Pássaros não falam, todo mundo sabe disso. Se falassem, seriam eles a dominar o mundo. Pensar, raciocinar, desvendar enigmas, construir bombas para dizimar aldeias ou engenhocas que prolongam a vida de quem já devia ter morrido há tempos, todas essas coisas não pareciam nada vantajosas a um pássaro. A vantagem estava em voar. Por que será que Deus não nos deu asas para amar?

“A humanidade não é tão ruim quanto tu dizes”. Foi ele quem disse, sem dar um piu, se é que me entendem. É óbvio — eu repito — que os pássaros não falam, ainda mais pra quem não tem ouvidos. Eles cantam nos quintais e nos pomares, metendo inveja na gente e muito colorido no dramalhão dessa saga em preto-e-branco. Nem todos os homens têm o brio necessário para desapegar das pedras. Muita munição foi desperdiçada contra os passarinhos. Fizemos isso na meninice, em exercícios de crueldade para aprender matar. “Quando eu crescer, quero ter mil gaiolas” — dizia o menino ambicioso e besta que matei em mim. O homem sempre andou preso às gananciosas ilusões da vida. Um gaiola dentro de outra gaiola dentro de outra gaiola dentro de outra gaiola dentro de outra gaiola. Quem estava preso, afinal?

Era a primeira vez que eu me arriscava numa fuga pelo céu de anil. Suponho que você não me viu voando por aí, mas, a ideia era sair da caixa, do quadrado, da zona de conforto de um cativeiro chamado vida medíocre — ou da ilha, como já escrevera Saramago. Eu já não tinha mais disposição e fé para levitar em sonhos de consertar a humanidade e coisa e tal. Salvar a própria pele já seria um concerto. Foi por isso que durante o voo cantávamos sem medo de vacilar com os vocábulos homófonos.

Por falar em me safar de alguma maneira, cheguei a recear que o sabiá-laranjeira me desprendesse das suas patas, do amarrilho das gavinhas, e me soltasse para a morte. Talvez fosse uma coisa merecida, no pensar de uma ave. Ele percebeu que eu estava sem confiança para completar o voo, então, mergulhamos espaço abaixo. Eu disse “Calma, amiguinho, espero que tu me perdoes, tive um pensamento errado a teu respeito, tu és uma ave, e aves não conversam com seres humanos, não mentem, não torturam, não matam por ambição de poder e ódio, eu pouco entendo das suas asas, são paradoxos da criação divina que fazem crescer em mim raízes profundas, as quais me impedem de voar sozinho, peço que me perdoes, sabiá, eu devia ter nascido árvore, quem sabe uma laranjeira bem florida pra tu pousares mais vezes em mim, todas as vezes que eu me sentisse triste além da média”.

Então, aterrissamos num quintal onde damas-da-meia-noite esperavam-nos de braços abertos.