Com revelações íntimas sobre um dos maiores artistas do século 20, filme que você não pode ignorar acaba de chegar na Netflix Divulgação / Netflix

Com revelações íntimas sobre um dos maiores artistas do século 20, filme que você não pode ignorar acaba de chegar na Netflix

Em menos de um segundo passam-se décadas e já não parecemos mais tão novos; esperamos que alguém nos desperte antes de sair, e impeça que o sol se ponha nas nossas costas sem que possamos nos defender. Uma fase particularmente rósea, ingenuamente luminosa da vida de Georgios Kyriacos Panayiotou (1963-2016) pode ser conferida em “Wham!”, registro jornalístico-literário do premiado documentarista Chris Smith sobre o início da carreira de astro pop — um dos mais sensíveis de sua geração — de Panayiotou, também conhecido como George Michael. Nascido em East Finchley, um então pacato e silencioso bairro de Londres, o menino Georgios, filho de um greco-cipriota e de uma bailarina inglesa, parecia jamais ter pensado em se tornar uma referência internacional na indústria fonográfica, com cerca de 150 milhões de discos vendidos e um patrimônio de 114 milhões de euros quando de sua morte, no dia de Natal de 2016, de comorbidades no fígado e no coração. Aos onze anos, meio gordo e desenxabido, Georgios se contentava em ser solenemente ignorado no pátio do colégio Bushey Meads durante o recreio e sentar-se no fundo da sala, onde um certo Andrew Ridgeley insistia em puxar conversa. Era ali que sua história começaria a mudar.

Smith destaca, com todo o mérito, a lufada de ar fresco, de renovação, de ímpeto juvenil, de vigor existencial que Ridgeley insuflaria sobre o amigo de sempre, que, de pouco em pouco, pé ante pé, embarcou na locomotiva da vida, aprontando-se para uma jornada de autoconhecimento, fama, sucesso e fortuna, que não demorou a acossá-lo também com solidão, a iminência de distúrbios psiquiátricos, aventureiros de toda sorte e… os escândalos. O diretor — responsável por pérolas da cinerreportagem como “Operation Varsity Blues: The College Admissions Scandal” (2021), em que junta a infinidade de minúsculas peças do monstruoso quebra-cabeça da compra da aprovação de filhos de milionários em universidades americanas; e “Bad Vegan: De Rainha do Veganismo a Foragida” (2022), sobre uma chef de cozinha “iludida” por juras de amor eterno que custaram-lhe a liberdade e uma dívida astronômica — bota panos quentes sobre a homossexualidade de Michael, revelada apenas em 1998, coincidentemente ou não, depois do falecimento da mãe e de ser flagrado em “conduta suspeita” com outro homem num banheiro público, e regala o espectador com passagens de franco lirismo, desvendando, por óbvio, seus anos de Wham!, o duo que compunha com Ridgeley, o grande ídolo (no começo, ao menos), entre 1980 e 1986. O Wham! só foi emplacar mesmo em 1984, com “Make It Big”, o segundo álbum, com o despretensiosamente frenético “Wake Me Up Before You Go-Go”; “Freedom”, um canto em que, talvez, o vocalista sinalizava alguma necessidade de se desprender dos grilhões do showbiz e, claro, das falsas expectativas que depositam-lhe os fãs e as gravadoras, nessa ordem; e “Careless Whisper”, um rhythm and blues cheio de suingue levado na cadência do soul em que poucos apostavam por se estender por impossíveis seis minutos e meio, mas acabou fazendo parte da trilha sonora de novelas e de filmes que souberam tirar-lhe o precioso sumo, como “Deadpool” (2016), dirigido por Tim Miller.

Muito da viabilidade de “Wham!” deve-se a Jennifer, mãe de Ridgeley, que por anos dedicou-se a colecionar álbuns de recortes, arquivos plenos de doçura e, quem sabe, a ambição de fazer a meteórica presença do filho no britpop conhecida de novas plateias. Essa é, por paradoxal que soe, uma das poucas inconsistências do filme, que valendo-se de páginas amarelecidas de jornais de há quatro décadas, encerra de vez o guitarrista num ostracismo com o qual parece não se incomodar, embora, de quando em quando, aceite tomar parte em comédias românticas insossas, como “Uma Segunda Chance para Amar” (2019), de Paul Feig, cujo título original é, não por acaso, “Last Christmas”, um conto de fadas musical sobre a vida de George Michael que hoje fede à mais abjeta hipocrisia. Michael teria feito sessenta anos em 25 de junho de 2023; Andrew Ridgeley ainda está de pé.


Filme: Wham!
Direção: Chris Smith
Ano: 2023
Gêneros: Biografia/Documentário/Musical
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.