O romance mais amado da história do cinema está no Prime Video Divulgação / Paramount pictures

O romance mais amado da história do cinema está no Prime Video

Os poucos que nunca souberam nada a respeito de “Bonequinha de Luxo” imaginam que Holly Golightly não passa de uma garota frívola, leviana e um tanto sem rumo, tentando manter a salvo os mistérios que dão a sua vida um amargor quase insuportável com a ajuda do sorriso que abre-lhe as portas erradas. Bem, ela é tudo isso, mas o jeito como Audrey Hepburn (1929-1993) e o diretor Blake Edwards (1922-2010) conduzem a personagem acaba por nos persuadir quanto ao bom caráter da anti-heroína, embora ela mesma não se canse de dar uma no cravo e outra ferradura e leve em fogo brando a real natureza de suas pretensões.

Decerto, a mágica que conserva o filme autêntico, corajoso e moderno depois de mais de seis décadas alude a esse jeito a um só tempo mordaz e sutil de dizer verdades de seu criador. “Breakfast at Tiffany’s” (“café na Tiffany”, em tradução literal), a novela que Truman Capote (1924-1984) publicara três anos antes, em 1958, narra num ritmo ora infrene, ora demasiado metódico as peripécias de Holly, que vai passando de uma acompanhante de cavalheiros endinheirados em rega-bofes nababescos e duvidosos a um arremedo de gente, escapando por um triz de um fim trágico.

Num tubinho preto combinando com os óculos escuros que ainda hoje ditam moda, Holly devora um croissant e um café enquanto contempla as vitrines da joalheria citada por Capote, na esquina da Quinta Avenida com a Rua 57 de uma Nova York bem mais glamorosa. Eis o programa que ela não troca por nada, voltar de suas farras, parar numa confeitaria simples e ir mordiscando o lanche com toda a parcimônia, para que dê tempo de chegar àquela calçada, cinzenta e fria como todas as outras, mas capaz de transportá-la para uma dimensão a vinte anos-luz daqui, lugar se reconhece como o que de fato é — ao menos para ela.

Capote e o corroteirista George Axelrod (1922-2003), nessa ordem, insistiram com a Paramount Pictures para que Marilyn Monroe (1926-1962) desse vida a Holly, mas Hepburn (1929-1993) era quem estava disponível e o resto é História. Validando a voz rouca das ruas, o que Deus risca ninguém rabisca, e Hepburn, ainda hoje associada a uma ideia de pureza, de sofisticação, de transcendência até, deu à personagem o ar de fera ferida que cai tão bem a Holly, cuja aura de mistério não resiste ao escracho da sexualidade deste insano século. Hoje, qualquer garoto que assista ao filme de Edwards pega no ar a forma como aquela infeliz ganhava a vida. Na boca de Hepburn tudo soa mais doce, mas a verdade verdadeira é que, lá pelas tantas, Holly sumia pelo salão e ia parar no banheiro, de onde saía ou com o ricaço que a levara ou outro qualquer, a depender de quem tivesse pagado mais. E terminava sozinha, expulsa pela luz da aurora feito uma vampira estilizada, para expiar suas culpas na Tiffany. A genuína tradução do que é ser uma waif, a junção das palavras “woman” e “naif” que Capote tanto prezava e que fez questão de destacar no livro.

Passados 63 anos, há coisas que não descem em “Bonequinha de Luxo”, como a escolha de Mickey Rooney (1920-2014), um homem branco, para viver o senhor Yunioshi, o japonês que administrava o prédio em que Holly morava — para não falar na força do estereótipo que inclui um brasileiríssimo José da Silva Pereira vivido pelo espanhol (!) José Luis de Vilallonga (1920-2007) como o milionário meio picareta que também dá sua contribuição para a ruína moral da Bonequinha de Luxo. A química entre Hepburn e George Peppard na pele de Paul Varjak, o escritor fracassado que vive às custas da dondoca de Patricia Neal (1926-2010), compensa quase tudo. O gato laranja sem nome de Holly Golightly (cujo nome oficial era Lula Mae) rouba a cena no final, mas tanto ele como ela são dois vira-latas, sem direito a fantasias burguesas a exemplo de identidade ou uma alma para chamar de sua. No centenário de Truman Capote, “Bonequinha de Luxo” leva o espectador a uma festa dos sentidos — o que inclui uma chuva de lágrimas.


Filme: Bonequinha de Luxo 
Direção: Blake Edwards
Ano: 1961
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 10