O filme pós-apocalíptico da Netflix que te deixará paranoico e o fará se sentir parte da trama Bertrand Calmeau / Netflix

O filme pós-apocalíptico da Netflix que te deixará paranoico e o fará se sentir parte da trama

Todo organismo apresenta suas moléstias, e com as sociedades não é diferente. Se há doenças, existe, quase sempre, uma cura, ou tratamentos, mais ou menos eficazes, com suas tantas possibilidades de remissão do mal, e em meio a elas, por óbvio, paira sempre a névoa de dúvida que acaba por tragar a esperança e expor o malogro da tentativa. A ficção no thriller canadense “O Declínio” é o desdobramento de uma realidade cada vez mais viva no cotidiano dos povos mundo afora. O primeiro longa-metragem de Patrick Laliberté aproveita-se das paranoias que a necessidade da sobrevivência em cenários extremos cria, algo que a humanidade fora obrigada a vivenciar em mais de uma ocasião ao longo de sua jornada — quando do recente surgimento da pandemia de covid-19, por exemplo —, para discorrer sobre suas emoções mais perniciosas.

Valendo-se de uma narrativa enxuta, Laliberté cozinha o suspense de sua história por quase um terço do filme, instante em que vem à luz a reviravolta que efetivamente segura o público até o fim. Enquanto isso, o roteiro do diretor, escrito com Charles Dionne e Nicolas Krief, deixa pelo caminho algumas pistas falsas no introito, ao descrever a viagem de Antoine, de Guillaume Laurin, morador de Montreal, até Laurentian, uma região montanhosa nos arredores de Québec, consciente de que aquele não é um passeio dos mais comuns. Antoine acredita que o mundo está com os dias contados, cada vez mais vulnerável a guerras, vírus desconhecidos que se alastram por toda parte e o consequente desarranjo social irrefreável que essas condições hão de ocasionar. Por tudo isso, considera-se um sujeito de sorte por ter recebido o convite de Alain, interpretado por Réal Bossé, a fim de integrar a equipe que receberá treinamento de sobrevivência específico para a eventualidade (quase uma certeza) de catástrofes de impacto mundial. Os quinhentos acres no topo da colina dispõem de barracas, painéis solares, um reservatório de combustível, gado, estufa, armadilhas para capturar animais selvagens e repelir ou matar qualquer invasor humano.

Antoine participa do treinamento junto com François, vivido por Marc-André Grondin; Anna, personagem de Marilyn Castonguay; Sebastien, interpretado por Guillaume Cyr; e David, na pele de Marc Beaupré, um grupo coeso, que partilha das mesmas instâncias quanto ao que pode ser da Terra, ainda que dois membros da equipe demandem atenção, por motivos opostos. David não esconde o fascínio pela causa defendida por Alain, e o personagem de Beaupré não tarda a evidenciar um comportamento psicótico, dado a assumir pontos de vista bélicos sobre qualquer assunto, o que não é pouco uma vez que nutre uma fixação por armas. Já Rachel, de Marie-Evelyne Lessard, uma ex-militar de verdade, durona e resiliente, não está nada disposta a transigir com posturas que considera inadequadas por ferirem a disciplina a que sempre se condicionara a fim de alcançar seus objetivos. Emana da personagem de Lessard um fumo de amargor por ter perdido em combate o namorado, também membro do Exército, uma faceta de seu jeito de ser que ela faz questão de não disfarçar.

A menção ao comportamento de manada — termo cunhado pelo neurocirurgião britânico Wilfred Trotter (1872-1939) depois de observar os conceitos de multidão, difundido pelo filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), e as noções de moral herdada e instinto de rebanho, propagadas pelo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) — é uma explicação plausível, até este ponto, para a obediência cega, inclusive da mercurial Rachel, ao mentor. Aquela pequena comunidade investe-se de uma aura de seita, dirigida por um psicopata muito competente em ocultar suas reais pretensões, devidamente respaldado por fanáticos que lhe devotam poderes que o restante da humanidade não tem. Tudo seguiria assim, não houvesse o fiasco de uma das etapas da instrução, quando o grupo é submetido a manusear armamentos, bombas inclusive. É aí que as coisas começam mesmo a sair do controle.

O segundo ato de “O Declínio” é marcado pela discussão sobre se a polícia deve ser informada de um fato que decorrera dessa atividade, o que desmantelaria todo o esquema de Alain, que de fato seria encarado pela opinião pública como um maníaco perigoso. Pesar-lhe-iam acusações de homicídio culposo e mesmo terrorismo doméstico, além de ocasionais processos cíveis. Por óbvio, a essa altura da história, o preceptor já não é mais unanimidade, e o racha que divide os ex-membros da confraria diabólica, Alain e David de um lado, Antoine, Anna e Rachel de outro, é o que passa a mover o que resta da narrativa, dando à história ainda mais tensão, trabalhada de modo ágil, com o elenco num desempenho particularmente inspirado, tudo embalado por um suspense que atinge o pico durante a travessia perigosa de um rio congelado.

“O Declínio” não deixa o melhor para o fim. O impasse dramático prolongado não é necessariamente entre as duas figuras que mais se opõem uma à outra, Alain e Rachel, o que tornaria a solução do conflito meio previsível, mas faz referência a duas cosmovisões políticas controversas, sem, no entanto, apoiar qualquer uma delas com clareza. A violência no roteiro de Laliberté, Charles Dionne e Nicolas Krief vem pontuada por uma neutralidade algo excessiva, o que faz a produção soar descartável. Todavia, a competência com que o tema é encaminhado não é nada desprezível, e há incontáveis prazeres na embalagem, graças, em boa medida, aos enquadramentos em grande angular das belas paisagens canadenses durante o inverno, desenvolvidos por Christophe Dalpé.


Filme: O Declínio
Direção: Patrice Laliberté
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 8/10