O filme mais insano e eletrizante de 2023 acabou de estrear na Netflix

O filme mais insano e eletrizante de 2023 acabou de estrear na Netflix

Mulheres recusam-se cada vez mais — e com razão — a ocupar os lugares que algumas pessoas ainda esperam delas, e se dedicam com veemência maior a, principalmente, contornar boa parte dos planos que a própria vida traça para elas. Uma pálida mostra de toda essa rebeldia pode ser conferida em “Fúrias Femininas”, que segundo grita o título do filme de Veronica Ngo, encarna anseios de pessoas que lutam, em sentido figurado e com toda a força de seus corpos esguios e musculosos por dignidade, por respeito e por desforra. Este trabalho de Ngo, a estrela de “Fúria Feminina” (2019), no singular, em que o também vietnamita Le-Van Kiet sublima a dor moral da protagonista, resgata momentos até então desconhecidos dessa lua cheia de faces, cujo brilho parece ir decrescendo à medida que sente se aproximar o golpe mais duro que lhe reserva o destino.

Depois de sessões badaladas no South by Southwest, o SXSW, o festival de cinema de Austin, no Texas, voltado a divulgar produções que se destacam pelo emprego da tecnologia, o público ocidental absorveu ainda mais o enredo de “Fúrias Femininas”, que, na verdade, não avança um milímetro, nem sobre o que já se conhece acerca da cultura do Vietnã e muito menos quanto ao que esse gênero tem apresentado ao longo da história do audiovisual. Feita a ressalva, Ngo abusa de metáforas muito bem construídas a fim de não desperdiçar a chance de tirar de um roteiro formulaico, definido pela avassaladora sucessão de clichês, as cenas que de uma maneira ou de outra afastam a narrativa do banal. Muito dessa mágica deve-se, como quase sempre, ao apuro técnico de recursos pontuais que, usados na proporção exata, investem o filme não propriamente de frescor, mas de uma beleza plástica que impressiona. Os vermelhos, rosas e verdes coruscantes que Morgan Schmidt aplica sobre os personagens nas intermináveis sequências de luta numa Ho Chi Minh que sucumbe ao apetite voraz do crime organizado, com investidas sobre a exploração de mulheres, a lavagem de dinheiro e, claro, o onipresente tráfico de drogas, confere à trama uma leveza tensa, sensação que se agudiza sempre que a diretora entra em cena na pele de Hai Phuong, a anti-heroína que também encabeça o filme inaugural.

Depois de uma introdução acelerada, bem ao gosto do que se assiste no transcurso dos 110 minutos de projeção — quando Ngo deslinda com a serenidade possível as tragédias íntimas de Phuong, abrindo o leque para temas indigestos como prostituição, abuso sexual de crianças e a miséria que advém dessas violências, o filme vai mergulhando mais fundo em como a garota administra suas amargas lembranças. O estupro em tenra idade, a morte da mãe como consequência direta do episódio, a coisificação precária a que é obrigada se submeter e o convívio com um gângster almofadinha dão subsídios retóricos para que se julgue que “Fúrias Femininas” não passa de um panfleto feminista meio presunçoso. Bem, não deixa de ser, mas a delicadeza com que certas verdades são ditas é o que de fato tem importância aqui.


Filme: Fúrias Femininas
Direção: Van Veronica Ngo
Ano: 2023
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10