O filme na Netflix que vai te fazer rir e chorar, mas também te ensinar a seguir em frente Linda Kallerus / Netflix

O filme na Netflix que vai te fazer rir e chorar, mas também te ensinar a seguir em frente

As protagonistas de “Mãe e Muito Mais” parecem numa encruzilhada, sentadas à beira do caminho, assistindo ao balanço das horas meio hipnotizadas por sua própria letargia. Curtir a vida adoidado vai se tornando uma ideia cada vez mais encerrada em outros tempos, mais e mais restrita àquele filme com o Matthew Broderick, depois que se celebra quarenta anos, essa idade mágica com a qual alguns malditos passam a vida a sonhar, ansiando por se ver livres do compromisso de estar sempre em forma; dispostos; e cheios de insegurança, mas enclausurados em modelos que definem o que é sucesso e o que é fracasso, como se Deus despejasse a alma dos homens numa fôrma, com profundidade, largura e altura igual para todos os mais de oito bilhões de homo sapiens sapiens que se encontram neste plano agora, além dos outros tantos que já passaram por aqui e dos muitos que ainda hão de chegar. Vencidos os quarenta, conclui-se que muita coisa, muita coisa mesmo, há que ser transformada, e a relação com os filhos talvez seja a mais delicada. Convenço-me um pouco mais a cada dia de que a proximidade dos quarenta, seja a quadra da vida mais adequada para se começar a pensar em filhos, para homens e mulheres — que hão de se valer mais e mais da providencial ajuda da medicina, a despeito do poder aquisitivo (se é para se ter alguma fé na humanidade, tenhamo-la direito).

Carol Walker, Gillian Lieberman e Helen Halston, as personagens de Angela Bassett, Patricia Arquette e Felicity Huffman casaram-se cedo demais, foram mães cedo demais, tiveram suas desilusões conjugais em momentos em que talvez ainda não fossem maduras o bastante e se costumaram à verdade falseada de que viver é isso mesmo, uma sucessão de desenganos, frustrações, hipocrisia e tédio, tédio à mancheia, que o casamento e, o principal, os filhos, os santos filhos transmutam toda mágoa em plenitude. Cindy Chupack, a diretora, junto com o corroteirista Mark Andrus, adaptaram o romance “Whatever Makes You Happy” (“o que quer que faça voce feliz”, em tradução literal, [2008]), de William Sutcliffe, de modo a ressaltar o vazio dessas três mulheres, que se agarram à maternidade como afogadas a uma tábua de salvação, não obstante o filme nunca tombe para o drama propriamente — mesmo as situações mais melancólicas vêm embrulhadas em piadas engraçadinhas que ninguém ousa querer ver reproduzidas na vida real. Bassett, Arquette e Huffman dão uma leveza exagerada à pletora de absurdos que Carol, Gillian e Helen levam a termo sem enrubescer, o que deixa “Mãe e Muito Mais” bem longe do intento natural e óbvio expresso no título, qual seja, provar que a maternidade não é viver em função de filhos, muito menos de filhos adultos. Para ser absolutamente justo, na undécima hora, a porção sexagenária do elenco — Arquette tem 54, e interpreta a mãe de um homem de 41, ou seja, é, no mínimo, bastante profissional, justiça se lhe faça —, parece tocada pelo anjo azul da serenidade, pega a vida pelos chifres e decide ser feliz. Mas aí tudo o que resta ao público é a sensação de cilada que envenena tudo.

Há lances memoráveis em “Mãe e Muito Mais”, entretanto. A personagem de Bassett desfia o rosário de lamentações das três amigas — e, felizmente, não se confirma a impressão de um mutismo incômodo e perene de Carol, como se assiste no trailer —, revoltadas, furiosas até, com o fato de que os filhos cresceram. Receber mensagem de texto no lugar de telefonemas no Dia das Mães soa como afronta (e o mais correto mesmo seria que enviassem, ao menos uma vez por semana um vaso de jacintos, como faz Carol para si mesma, assinando um cartão, inclusive). Não há como se levar a sério um filme como esse se não tomando-o por parâmetro do que não fazer em sendo mãe. A viagem delas, de Poughkeepsie, nos arredores de Nova York, até a megalópole onde moram Matt, Daniel e Paul, os filhos vividos por Sinqua Walls, Jake Hoffman e Jake Lacy, transforma a vida dos três num inferno, e eu francamente não sei como pelo menos um deles não perde o emprego que levou séculos para conseguir e no qual se realiza. Nesse segmento, “Mãe e Muito Mais” começa a se parecer muito com “A Intrometida” (2016), a ótima comédia dramática em que Lorene Scafaria faz Susan Sarandon parecer uma débil mental, implorando pelo afeto de estranhos porque a filha tenta ganhar a vida sem os seus auspícios. A propósito de filhos, decerto o personagem de Hoffman é o que mais se aproxima do teor dramático que se espera num filme com tal proposta. Daniel, o filho da personagem de Arquette, é um homem patologicamente vacilante convivendo aos trancos e barrancos com uma realidade dura demais, sem dúvida a resposta inversamente proporcional aos delírios de grandeza semeados pela mãe, que, entre outras pérolas, volta para dizer que o alcoolismo de Daniel lhe cai bem porque o rapaz é escritor — na verdade, ele publicara um conto na “The New Yorker” há muito tempo e teve um livro congelado pela editora com quem assinou um contrato meio suspeito —, além de recriminar seu namoro com Erin, a cabeleireira de Heidi Gardner, numa aparição breve, mas excepcional, porque a moça é “só” uma cabeleireira. Há mulheres que, definitivamente, mereciam assinar um documento, reconhecido em cartório, em que assegurassem que nunca paririam ou se atreveriam a educar ninguém.

O desfecho, como já insinuei, quebra um pouco da beleza torta de “Mãe e Muito Mais”, que, volto a dizer, deve ser tomado pelo seu contrário. Com mães como Carol, Gillian e Helen, continuo com Machado e o indefectível pessimismo do Bruxo do Cosme Velho que pensava ser injusto, até cruel, transmitir a uma criança o legado de uma miséria que vem de tão longe. E o pior é que ninguém nunca pode assegurar com toda a convicção não vir a ser uma mãe ou um pai como aquelas civilizadas senhoras.


Filme: Mãe e Muito Mais
Direção: Cindy Chupack
Ano: 2019
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10