Filme hipnotizante escondido na Netflix vai te manter com o coração na boca por 91 minutos Divulgação / Netflix

Filme hipnotizante escondido na Netflix vai te manter com o coração na boca por 91 minutos

Junto com a filosofia, a crença em um deus qualquer, surgido da esperança de dias melhores, de tempos que possam escapar à tensão da vida mundana, a todo desatino que se forma em torno das expectativas nunca tornadas reais, orienta o espírito do homem para uma percepção menos niilista da existência, do lugar que nela ocupa, de sua própria natureza. Por ser tão poderosa, a fé desperta paixões e interesses difusos de constituição divinal, e é nesse oceano de possibilidades que “Feitiço” navega. A prática religiosa usada como ferramenta de subjugação de alguém em situação vulnerável não é propriamente uma surpresa, mas Mark Tonderai tonifica o argumento de seu filme adicionando elementos que deixam a história ainda mais absurda, jogo bem pensado a fim de desviar-se do magote de lugares-comuns que se veem nessas histórias. O roteiro de Kurt Wimmer lança mão da trilha solene de Ben Onono no intento de enfatizar os vários momentos de aterradora introspecção que se abate sobre o protagonista depois que, de maneira literal, cai do azul numa realidade que se lhe apresenta pior que a morte.

O dia a dia de Marquis T. Woods, o megaempresário vivido por Omari Hardwick, aparece como uma espécie de fadas, em que ele é o rei, todo-poderoso e onipresente, centro das atenções da família e de seus funcionários. Wimmer coloca Marquis como o marido calculadamente arrogante, que não consegue passar cinco minutos sem que despeje um gracejozinho que remeta a seu sucesso e a montanha de dinheiro de cujo topo se ri da mediocridade dos simples mortais cá embaixo. Pano rápido e o protagonista está em seu escritório tratando dos negócios que fazem seu mundo girar — inclusive com seus “irmãos de cor”, como se refere aos outros negros ricos como ele —, até ser surpreendido pela notícia da morte do pai, com quem já não falava há muitos anos. Nesse momento, Tonderai começa a levar o personagem de Hardwick para a condução eminentemente dramático de “Feitiço”, depois que embarca para o interior do Kentucky, no sudeste americano, a fim de participar do funeral com a mulher, Veora, interpretada por Lorraine Burroughs, e os filhos, Tydon e Samsara, de Kalifa Burton e Hannah Gonera.

O deslocamento para a casa onde Marquis vivera muito antes de ser transformar num dos poucos reis negros dos Estados Unidos guarda segredos que se vão revelando aos poucos. Um evento inexplicável e sinistro o separa da família e ele torna-se hóspede de Eloise e Earl, o casal de caipiras negros encarnados por Loretta Devine e John Beasley. O início do segundo ato marca o suspense que se alonga até o encerramento, aproximando “Feitiço” de outras produções já clássicas por se deter em aspectos nada óbvios nesses enredos, a exemplo de “Corra!” (2017) e “Não, Não Olhe!” (2022) de Jordan Peele, até mesmo na fotografia, granulada e em tons austeros de azul e roxo, de Jacques Jouffret. O elenco majoritariamente negro também não é mero capricho. O diretor logo destrincha o primeiro enigma de “Feitiço”, explicando em parte o porquê do nome.

Filmes como o de Tonderai e Peele, thrillers de terror que tocam pontos específicos da cultura negra, consolidam-se como um novo e perene caminho para o cinema, malgrado também acarrete não afirmação e combate ao preconceito, mas seu oposto, dada a forma descuidada como as religiões de matriz africanas acabam sendo expostas ao público leigo. Isso posto, “Feitiço” é uma reflexão pertinente sobre o homem, sua invencível arrogância e sua pouca disposição a conhecer seus próprios esconderijos. Sem o socorro de magia nenhuma.


Filme: Feitiço
Direção: Mark Tonderai
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Terror
Nota: 8/10