O filme encantador na Netflix que todo mundo deveria assistir para deixar esse final de ano mais leve Divulgação / Portugal Film

O filme encantador na Netflix que todo mundo deveria assistir para deixar esse final de ano mais leve

Vivemos nas lembranças de tudo quanto fomos e de todos aqueles que passaram por nossas vidas, deixaram um pedaço de si, levaram um bocado de nós e se misturaram à bruma do tempo, voltaram ao pó seco e encarnado do chão da vida e transmutaram-se numa substância invisível a olho nu, mas forte o bastante para fecundar a terra, cobrir-se do verde da esperança, medrar, crescer, tocar o céu e, por fim, derramar-se em frutos que saciam a fome de corpo e espírito, momento em que o ciclo recomeça. Daí não ser nenhuma loucura elucubrar sobre a eternidade da vida, o mistério mais óbvio da Criação, sucessão de encontros e desencontros, chegadas e partidas, triste travessia de um mar proceloso a bordo de uma nau sem rumo e sem casco. Somos, sem remédio, sós no transcorrer de uma vida inexplicavelmente efêmera se comparada à das tartarugas e baleias, e longa demais em se tomando por parâmetro o tempo das borboletas e mesmo dos cães, esses amigos que nos amam sem nos conhecer. O único alento do homem é saber, ou antes, supor que pode fazer qualquer coisa no ínterim entre a luz e a treva no intuito de sentir-se menos e poder absorver também o mundo que o cerca, com suas outras solidões, seus outros mundos, suas outras vidas. Dessa ilusão, lírica, pueril e comovedora como o diabo, nascem as famílias, refúgio primeiro — e outrora também último — do homem e dos martírios que só em si próprio doem. Mas como doem.

Famílias guardam os segredos todos que as fazem tão únicas e a um só tempo tão semelhantes umas às outras, e essas histórias só não se perdem pelo inexorável tempo porque conseguem ser ainda mais fortes do que ele ao encontrar a fórmula mágica que lhes garante o interesse das gerações que vêm depois, sequiosas por algum vestígio de sua importância no mundo, o que nem sempre é fácil. Segredos que atravessam décadas restritos apenas a círculos muitos íntimos afloram impetuosamente, como se precisassem se desvelar às multidões para preservar sua natureza oculta. É essa a ideia de Catarina Vasconcelos em “A Metamorfose dos Pássaros” (2020), ensaio metaficcional em que a diretora se estende sobre suas próprias lembranças junto a seus avós e os seis filhos do casal, dentre os quais dá maior destaque a um em especial.

Vasconcelos abre seu filme mencionando o avô, Henrique, um marinheiro português que para aplacar a distância de casa, da mulher e dos filhos passou a escrever-lhes cartas. Os registros da solidão do mar, esse patrão generoso e exigente que, se por um lado lhe proporcionava o sustento com que podia manter os seus, também o espezinhava com longos períodos fora do alcance de seus afetos, viraram uma correspondência fértil e caudalosa com Triz, de Beatriz, que nunca pensou em abandonar o navio. A diretora-roteirista exalta o amor dos avós, que entre um e outro hiato ultramarino, concebeu a prole numerosa sobre a qual vai discorrendo em lances que amalgamam realidade e sonho, à luz de um romance de José Saramago (1922-2010). Vasconcelos centra-se, naturalmente, na figura de seu pai, Jacinto, sobre o qual reservar a grande brincadeira que há por trás de um enredo de tanta circunspecção; enquanto esse momento não chega, desenvolve as mais lindas figuras de linguagem acerca desse nome, cuja óbvia ligação com a terra, em oposição ao elo de Henrique com o oceano, remete o público à infância de seus seis filhos com Triz.

Seria impossível apreender toda a poesia do filme sem a valiosa contribuição da fotografia de Paulo Menezes, e sua mescla de tons frios com as cores luminosas dos dias ensolarados em que Triz se deixa tomar pelas brincadeiras dos meninos enquanto o marido se perde na imensidão das águas. Sobre essa mulher singular, hábil em conversar com os pássaros, Vasconcelos imprime as metáforas plenas de sentido, que, como toda metáfora, oferece ao emissor justamente aquilo pelo que busca. A mim, de minha parte, “A Metamorfose dos Pássaros” me fez pensar em alguns dos meus mortos, sobretudo no irmão mais moço que me aparece em sonhos lindos e monstruosos com alguma frequência, sonhos que emulam a meninice lúdica e onírica que tivemos num tempo em que o mundo parecia muito maior, porém muito mais afável, pronto a se render aos nossos irresistíveis encantos. Também foi assim com Henrique e Triz. E sempre será com todos os que amam e desamam, vivem e morrem.


Filme: A Metamorfose dos Pássaros
Direção: Catarina Vasconcelos
Ano: 2020
Gêneros: Documentário/Drama
Nota: 10