Ganhador do Oscar e absolutamente encantador, filme na Netflix vai te enfeitiçar Divulgação / Sony Pictures Classics

Ganhador do Oscar e absolutamente encantador, filme na Netflix vai te enfeitiçar

É uma lástima, mas somos, todos, escravos do tempo, carrasco da vida que fustiga-nos com a morte de quando em quando. Desde o primeiro suspeito, o homem se flagra numa contenda figadal contra o único adversário que nunca poderá vencer, passem-se duas horas ou um século. Delicadamente, o mais cínico dos verdugos permite que nos locupletemos com o confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, sendo que o gênero humano está essencialmente condenado a perseguir a quimera de ser feliz, já que o mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C – 348 a.C), só um simulacro de imagens muito íntimas de cada um, dos conceitos eivados todos de nossas idiossincrasias as mais diversas, que nos mantêm mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios. Realidade das mais incontestáveis dentre todas, a ditadura do tempo se estende para além de nossa vã filosofia e nossa exígua compreensão, e, enquanto houver alguma forma de vida pulsando no caos maravilhoso do universo, sempre haverá de existir. O problema fundamental do homem não é o avanço despótico das horas, mas encontrar um meio, por mais improvável que seja, de fazer-se-nos revelar o gozo onde grassa o desespero.

Woody Allen é um especialista na arte de despistar a banalidade do tempo. As histórias que Allen resolve contar sempre têm, de uma ou outra forma, aquele gosto bom de magia, precisamente tudo de que mais ressentem-se homens comuns em suas vidas comuns — e qualquer um é capaz de reconhecer que não é possível ter uma vida extraordinária nos 365 dias do ano. Um dos diretores mais prolíficos do cinema ensina com seu 41° filme que, se viver é quase sempre um desafio, tanto melhor se o encaramos como uma sequência de excelentes possibilidades quanto a absorver cada uma das muitas lições que a vida não se cansa de nos dar, todas de algum modo ligadas ao nosso reiterado desajuste em captar o que o mundo a nossa volta nos diz em alto e bom som, esperando que nós, rebeldes e presunçosos, escutemos — o que, definitivamente, não é pouco. “Meia-Noite em Paris” (2011) é uma dessas tentativas encarniçadas de Allen no intuito de chamar-nos à razão.

Gil Pender é um homem à beira de um ataque de nervos. No limite, Pender, outro dos inúmeros alter egos com que Allen analisa-se a si mesmo — e na medida em que o faz, estende sua psicoterapia íntima a todos quantos assistem a seu filme —, está prestes a renunciar a tudo, malgrado ainda não o saiba, nem como levará a cabo seu plano. Num texto meticuloso, pleno das sacadas geniais que se convertem em diálogos precisos e elucubrações filosóficas no mínimo originais, o diretor-roteirista sova a massa do grande dilema existencial de seu protagonista até começar a obter o resultado milagrosamente homogêneo que se tem no desfecho. E haja milagre: mesmo Owen Wilson, conhecido por desempenhos irregulares mesmo em enredos não propriamente sofisticados, apresenta uma performance escorreita, ancorando uma trama de núcleos com pontos de contato inusitados e pouco óbvios uns com os outros. É essa mesma a definição de “Meia-Noite em Paris”, transitar de um lado para o outro, do presente-futuro para o passado sem que ninguém questione em momento algum se aquilo faz sentido. Porque está na cara que faz.

Allen desenvolve o conflito de seu personagem central de modo a tomar sua história como trampolim para mergulhos mais arriscados. Pender, um autor de roteiros de blockbusters hollywoodianos estúpidos que anseia por virar a chave e escrever o romance que o vai cacifar como um artista dito sério — é simplesmente elementar o tom de injusta autocrítica do diretor —, entra numa rota de colisões cada vez mais traumáticas com Inez, a noiva patricinha vivida por Rachel McAdams. Ao passo que, num primeiro instante, torcemos para que os dois se acertem, à medida que a história toma corpo qualquer um vê que aquele é um caso perdido. É justamente quando tem a coragem de declinar do convite de Paul, de Michael Sheen, para que saiam para aproveitar a noite parisiense — sob a perspectiva burguesa e imediatista de americanos tranquilos, claro —, que Pender cruza a ponte metafórica e literal que o separa do mundo a que julga pertencer e se aproxima das personalidades a quem Allen faz questão de pagar tributo: Zelda (1900-1948) e F. Scott Fitzgerald (1896-1940), Ernest Hemingway (1899-1961), a critica de arte Gertrude Stein (1874-1946), Alice B. Toklas (1877-1967), e os artistas que frequentavam o famoso salão de Stein, de Kathy Bates num momento contido, mas não menos brilhante (e fundamental na narrativa): Pablo Picasso (1881-1973), Salvador Dali (1904-1989), Cole Porter (1891-1964), Man Ray (1890-1976), Luis Buñuel (1900-1983).

Voltando à tal lição, tudo de que Allen quer falar mesmo é acerca dos perigos da insatisfação com o tempo em que se vive, do risco de se ficar preso num tempo que não é o nosso. O tempo e o mundo são o que fazemos deles. “Meia-Noite em Paris” é um filme de que ninguém pode se abster, mormente numa quadra tão lúgubre deste insano século de trevas.


Filme: Meia-Noite em Paris
Direção: Woody Allen
Ano: 2011
Gêneros: Ficção científica/Fantasia/Romance/Comédia
Nota: 10