Você não é especial

Você não é especial

Ontem vivi um dos meus piores dias. Eu li certas coisas a meu respeito que me puseram no chão. Drummond, o poeta, pra mim, é quase um tio, e já tinha alertado quanto às pedras do caminho. Não custava ter falado também dos buracos. Penso que caí num deles. Perdi uma amizade. Foi assim que a encontrei.

Eram doze horas de um dia escaldante. Dava pra fritar uma almôndega no asfalto. Eu dirigia do subúrbio em direção ao centro, quando avistei uma mulher sentada sozinha na parada de ônibus. Jamais tinha feito coisa parecida: parei o carro e ofereci carona.

Eu disse: moça, bom dia, não me leve a mal, hoje está fazendo um dia quente pra cacete, um calor de tirar pica-pau do oco, vou até o centro da cidade dentro dessa enorme banheira viciada em petróleo, garanto que isso não é uma cantada, não sou o maníaco do parque, se esse papo lhe assusta, se eu lhe meto medo, um motorista que você nunca viu mais gordo a oferecer uma carona, olha só, eu mesmo não aceitaria, confesso, mas, está um dia tão quente, você aí derretendo o seu blush à espera de um ônibus, eu dirigindo solitário ao som do Creedence, num meu carrão velho com ar condicionado geladinho, mas que fede a carpete mofado, é verdade, nada no mundo é perfeito, peço que me desculpe, você é quem sabe, você é quem manda, você decide, moça.

Ela decidiu pular pra dentro do meu Caravan pré-histórico. Começamos uma promissora amizade que sequer terminou em punheta. Não me venham com insinuações: eu não a comi; ela não me comeu e ponto. Vocês deviam saber, há sim mulheres que comem homens. Devoram um pobre diabo como se ele fosse uma salsicha. São criaturas dotadas de vaginas antropofágicas. Às vezes, o sujeito se assusta com tanta gulodice e vaza. São coisas que acontecem. Hoje em dia, as mulheres metem medo. Desde o dia em que queimaram sutiãs nas ruas, elas nunca mais pararam de perseguir a felicidade: com, sem ou apesar dos homens.

Inteligente, espirituosa, bem humorada, contratei-a logo. Começou a trabalhar pra mim, de forma terceirizada, no seu próprio escritório, cuidando da seleção e recrutamento de pessoal para a empresa. Ficamos nessa durante uns três anos. Raramente, nos víamos. Tudo se resolvia pelo telefone ou pelo computador. Tudo muito prático e impessoal. Até o dia em que brigamos feio. Isso aconteceu ontem, um dia tão quente quanto aquele em que lhe ofereci carona. Nunca mais faço esse tipo de coisa: oferecer carona a estranhos, brigar com gente conhecida. Estou velho demais pra isso. Na caixa de mensagens do telefone celular havia um verdadeiro ensaio a meu respeito. Ela escreveu assim — se vocês concordarem, leitores, vou manter os eventuais erros gramaticais e de concordância. Abre aspas.

Sabe, tenho percebido que você anda impaciente, sempre me cobrando as coisas de forma desnecessária, esse é o seu trabalho, eu sei, e o meu eu sei qual é, porém, da minha parte, não estou nada satisfeita com isso, pois a sua forma de trabalhar não me motiva a fazer o meu melhor, você não é tão especial quanto imagina, sou criticada duramente na maior parte do tempo e levo bronca toda semana, você é meu cliente, é fato, mas existe uma linha de respeito, quando eu estava com pneumonia, em nenhum momento você perguntou se eu melhorava, só me cobrava e demandava, diferentemente dos demais clientes que eu tenho, eles sim preocuparam-se comigo, você me fez entender que não importa o que aconteça comigo, mas, se estou dando resultado, custe o que custar, eu não atendo a sua empresa só pelo dinheiro, acredito na sua proposta, várias outras empresas do segmento já me convidaram para fazer esse mesmo trabalho que faço aí, por valores até mais altos, e não topei porque gosto muito do que faço para deixar perder a qualidade, parece que tudo que eu faço tá errado pra você, sem levar em consideração a minha formação profissional, sei do meu valor e isso já basta, por isso eu te falei que se não estiver satisfeito com o meu trabalho me avise, pois continuar assim é ruim pra caralho e nada produtivo pra nenhum dos lados, não tenho a intenção de ser rude e grossa com você, só honesta, para que as coisas andem certo, durante esses dois anos aprendi muito com vocês, queria muito fazer parte da história da sua empresa, mas, confesso que ando triste e isso está me incomodando, você tá me entendendo?

Eu pensei que estava entendendo tudo direitinho desde o início, antes mesmo que ela vomitasse tantos sapos sobre minha cabeça. Então, sem pensar muito, com aquele danoso pragmatismo que me é peculiar, respondi: ok, você está certa, vamos parar por aqui, assim que você puder, passe no departamento financeiro pra acertar o que tem a receber, muito obrigado, peço desculpas, passe bem.

Por fim, em letras garrafais, antes que eu tivesse tempo de escrever Bem-vindos a Pindamonhangada, ela me mandou à merda. A tela escureceu. Minhas vistas escureceram. A bateria do telefone arriou; o meu dia, também. Senti um enorme peso nas costas que me fez arquear mais que um verme fugindo do bico de um passarinho. Sentia-me um traste, juro.

Posso lhes assegurar que jamais conversáramos naquele nível, ainda mais, por telefone. Pensei: ela deve estar bêbada, drogada ou só de saco cheio comigo. Sei lá. Qualquer coisa que culminasse com a fuga desenfreada da verdade, a latir pelos portões escancarados do peito. Acreditem, ontem foi um dia muito quente e triste. Afinal, pode ser que ela tenha razão.