A responsabilidade de quem escreve

A responsabilidade de quem escreve

“No início era o verbo e o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Cito aqui o evangelista João apenas para dizer desde já que tudo que existe, tudo o que se move o faz pela necessidade de comunicação. O escritor tem que ter essa chama primordial, tem que ter essa premência de comunicar.

De início, recorro à antológica distinção estabelecida pelo sociólogo e crítico literário francês Roland Barthes. Para Barthes existem duas classes de profissionais que trabalham com a palavra escrita: o escritor e o escrevente.

O escritor é aquele que trabalha a sua palavra e absorve-se funcionalmente nesse trabalho. Ele tem finalidade estética, postula o belo, o alargamento da realidade por meio do encantamento, da arte literária. A atividade do escritor comporta dois tipos de normas: as normas técnicas (de composição, de gênero, de escrita) e normas artesanais (de labor, de paciência de correção, de perfeição). A estética da palavra, da frase, do discurso justifica o trabalho do escritor.

Já o escrevente é um profissional transitivo, que não postula um fim estético com seu discurso (quer por exemplo: testemunhar, explicar, ensinar, catequizar). Para esse profissional a palavra não é um fim em si mesma, mas apenas um meio na consecução de outros objetivos.

A considerar como correta essa distinção de escritor e escrevente, podemos observar que hoje em dia, muitos autores de livros que se consideram e são considerados escritores, são apenas escreventes. O que aliás não lhes retira a importância nem o mérito, apenas seriam animais de um outro bioma, para usar uma expressão ambientalista, que anda tão em voga atualmente.

Mas quem escreve, seja escritor, seja escrevente, tem uma responsabilidade, dentre tantas, que antecede a todas as outras: conhecer a ferramenta de seu trabalho. Ou seja, quem se aventura pela escrita tem a responsabilidade de dominar o seu idioma. Tem que conhecer a ortografia, a sintaxe, a prosódia, a gramática, enfim.

Se se tratar de escrevente, aquele que usa a palavra como meio e não como fim, não tem o direito de escrever errado, de agredir as normas da língua culta e oficial. Já ao escritor assistem eventualmente as chamadas licenças poéticas. Quem escreve para fins estéticos tem a possibilidade ética de transgredir as normas gramaticais na construção de sua obra. Uma ilustração para este caso é o renomado escritor mineiro Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, que, para construir sua obra monumental, revirou a gramática da língua portuguesa pelo avesso. Outro exemplo: o escritor irlandês James Joyce, que subverteu grande parte da sintaxe do discurso literário conhecido até então e estendeu enormemente os horizontes do romance, na era das vanguardas. Para muitos críticos, Joyce teria provocado o fim do romance, porque depois dele não seria possível escrever nada de novo. Mas está aí Gabriel García Márquez ou o próprio Guimarães Rosa para desmentir essa tese escatológica.

Mas Guimarães Rosa não foi irresponsável em relação ao domínio do idioma pátrio: ele só pôde transgredir as normas da língua culta porque ele as conhecia e as dominava como poucos. Só pode transgredir quem domina. Quem não domina não é capaz de transgredir criativamente. É capaz de no máximo cometer barbarismos, estupros da língua.

O escritor, mais do que o escrevente, tem a responsabilidade de formar leitores. Para isso ele precisa ser curioso intelectualmente, tem que fazer aeróbica do espírito, ter o desprendimento de se colocar no lugar dos outros, com toda a força de sua alma. O artista precisa ter múltiplas personalidades. Quando seu personagem é uma criança desamparada, ele tem quer se colocar no lugar dessa criança e sofrer todo o seu desamparo. Quando seu personagem é um bandido contumaz, o escritor tem que entrar no coração dele, ou deixar que ele entre no seu próprio coração para que possam ser ditas as palavras certas, na justa medida que a humanidade requer. Se a personagem da vez é uma prostituta, o autor tem que senti-la em toda a sua inteireza. Além disso, o autor tem que ser ele mesmo, deixar a marca de sua personalidade, registrar a firma de seu estilo.

Sobre esta questão da responsabilidade de formar leitores, gostaria de me alongar um pouco mais.  Nossa ojeriza pelo livro tem raízes históricas e profundas. Vale lembrar que o Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravatura, com isso a educação do povo foi solenemente negligenciada séculos a fio. O ensino primário só foi universalizado na década de 1990 do século 20, ou seja, há menos de 30 anos. No entanto, o rádio já estava presente desde os anos 1930. A televisão desde os anos 1950.  Por incrível que pareça, a comunicação eletrônica chegou antes da escrita na sociedade brasileira. É como se alguém cometesse a distorção de aprender o canto anteriormente à fala, a corrida antes do andado.

Leitores potenciais alegam que não leem porque não têm tempo, no entanto, não lhes faltaria tempo para passar horas e horas num botequim ou diante de uma TV. Outros alegam que o livro é muito caro. Em média 5% do salário-mínimo. Porém, uma televisão média custa de três a quatro salários-mínimos. Nem por isso os lares brasileiros são desprovidos de televisão. Para ter o que ler, bastaria comprar um livro e fazer permutas sucessivas com os vizinhos e amigos. O que falta na verdade é hábito. Valorização social da leitura. 

O poder público ainda não conseguiu acertar o passo na relação com o livro. Um estudante é capaz de ir do jardim-de-infância ao pós-doutorado sem ter que entrar numa livraria. Assim como o bar é o ambiente propício para se desenvolver a convivência com o álcool, a livraria (ou biblioteca) é o ambiente propício para se desenvolver a convivência com o livro.

Uma sociedade que esnoba a educação, que não faz da leitura um hábito natural e salutar, fatalmente formará pessoas insensíveis, que não conseguem captar o mundo em sua essencialidade, nem entender a vida em seu todo. E assim, acabam elegendo o consumo como o deleite supremo, a ignorância como identidade nacional e a estupidez como motivo de orgulho.

Não temos o poder, sozinhos, de reverter essa situação. Mas na condição de cidadãos e escritores, temos a responsabilidade de lutar contra isso, cada qual na medida de suas possibilidades.

Voltando mais especificamente à atividade da escrita, para que alguém leia nossa obra ele terá que celebrar conosco um contrato tácito de suspensão temporária da desconfiança. E o leitor só vai cumprir esse contrato se perceber ali a nossa entrega, a nossa verdade. Assim, quem escreve tem a responsabilidade de ser verdadeiro, seja na transcrição dos fatos, seja na descrição de suas fantasias.

Decálogo do Escritor

1 — Dominar as ferramentas de seu ofício a ponto de poder reinventá-las. E lembrar: o Belo nem sempre é bonito. Manter-se descolado da crítica (não alheio), ela costuma ter os pés no passado;

2 — Estudar, estudar e novamente estudar, e fazer de sua cultura uma placenta de bom convívio. Ser paciente e perseverante na construção de sua obra. As pedras sedimentárias são construídas ao longo das eras geológicas;

3 — Refletir sobre a realidade sem se deixar adormecer por ela. Não perseguir a celebridade, mas se ela vier em decorrência de sua obra, aceitá-la com naturalidade;

4 — Ver o mundo com o coração de um sábio e os olhos de uma criança, para perceber a realidade, mas sempre com estranhamento;

5 — Manter vivo o orgulho pelo ofício, mesmo sem remuneração, e dele não desistir nunca, a ponto de encaminhar as novas gerações pelos caminhos da cultura;

6 — Valorizar a cultura de sua aldeia, mas num contexto maior, inserida no mundo.

7 — Resistir a todas as formas de totalitarismo, de banalização, de pornografia e de aprisionamento do espírito pelo mercado;

8 — Valorizar a arte acima de qualquer objeto de consumo, e o meio ambiente como suporte da vida. Aceitar naturalmente as novas mídias para veiculação de seu trabalho;

9 — Ver o semelhante como um produto da civilização e da cultura, vivendo além da própria vida, no suceder das gerações;

10 — Ter o ser humano como medida e referência no convívio com as demais espécies, e a cultura como o engrandecimento de sua condição.