O Brasil da série ‘Os Outros’ Estevam Avellar / Globo

O Brasil da série ‘Os Outros’

De tempos em tempos, o lado estranho do país dá as caras nas telas de cinema e da televisão. Na era do streaming, essa aparição do sombrio ocorre também nos telefones celulares. Nada de encontro de classes sociais, samba no morro, festas de famílias ou o “equilíbrio dos antagonismos” de senhores e escravos, patrões e empregados. A mais recente imagem do horror brasileiro é a série “Os Outros”, de Lucas Paraizo e exibida pela Globoplay. A história teve como ponto de partida uma ideia da atriz e escritora Fernanda Torres, dona de um olhar agudo para as esquisitices nacionais.

“Os Outros” tem início numa situação explicitamente tirada da peça teatral “Deus da Carnificina” (2006), da francesa Yasmina Reza e adaptada para o cinema em 2012. Dois adolescentes brigam na rua, e os pais deles se encontram para fazer um acerto de contas. No original, os personagens são pessoas de classes altas, com trejeitos civilizados para esconder um ressentimento de dar calafrios. A violência brota em diálogos educados e cosmopolitas. A versão brasileira dessa trama bem simples mergulha no caráter de uma classe média em franca degradação nos anos recentes.

Na série da Globoplay, Cibele (interpretada por Adriana Esteves) se enfurece com a surra sofrida pelo filho Marcinho (Antonio Haddad) na quadra de esportes do condomínio. O fato é que ocorreu um espancamento brutal. Inconformados com o episódio, ela e o marido Amâncio (Thomas Aquino) vão conversar com os pais de Rogerio (Paulo Mendes), autor da violência: Mila (Maeve Jinkings) e Wando (Milhem Cortaz). O que é uma briga corriqueira de meninos vizinhos, torna-se gradativamente uma inacreditável guerra pessoal e trágica entre os personagens.

O ingrediente que transforma a série em “carnificina à brasileira” é justamente o ambiente do condomínio onde moram os personagens. Trata-se de um conjunto enorme de prédios, com dezenas de apartamento por andar. A localização dos edifícios é a famosa Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, região do bairro da Barra da Tijuca e de comunidades como Rio das Pedras e Cidade de Deus. Para quem ainda não fez a associação, esse é o habitat natural das milícias cariocas. É ainda uma contradição de quem busca nos condomínios o sonho de segurança e de tranquilidade.

Síndicos tirânicos

Morar em condomínios simboliza a vontade de se afastar das ruas das grandes cidades brasileiras. Os moradores acreditam deixar a barbárie do lado de fora dos muros e das cercas eletrificadas. O psicanalista Christian Ingo Dunker analisou anos atrás o fetiche nacional pelos condomínios e, sobretudo, a figura do síndico tirânico. Um personagem que encarna a autoridade e é temido pelas centenas e milhares de pessoas que vivem em tais espaços. Não foi por acaso, portanto, que Dunker serviu de consultor da série que se passa nesse ambiente familiar para qualquer brasileiro ou brasileira.

“O síndico é como um novo sintoma da patologia brasileira da autoridade: envolve conflito entre exigências antagônicas, simbolização do desejo e principalmente um tipo especial de satisfação, chamado gozo. Esse terceiro quesito parece ter sofrido uma inversão. Se antes a autoridade dizia como gozar, em imagem e espelho ao pai, agora ela se contenta em gerenciar o gozo perturbador do outro. Se antes o domínio se exercia no território pessoal do latifúndio familiar, agora ele se organiza em torno do espaço impessoal do condomínio”, assinala Dunker.

Diante da falência do espaço público, o síndico virou a esperança (falsa) de ordem e paz. Em “Os Outros”, a posição de autoridade é assumida pelo policial Sérgio (Eduardo Sterblitch), que toma o lugar da síndica para resolver a crise instalada no condomínio com a briga dos adolescentes. Ele é a grande novidade ou a “nota específica” que dá a cara brasileira à série da Globoplay. Sem esse personagem, a história poderia se passar em qualquer ponto do mundo, até mesmo na Europa ou nos Estados Unidos. E logicamente estamos falando de um miliciano da Zona Oeste carioca.

O miliciano é aquele sujeito chamado, contratado ou convocado pela classe média para solucionar problemas. Como Cibele não acredita no trabalho da polícia e da Justiça, ela recebe a sugestão de procurar Sérgio, o profissional da ordem. Ele é também o clássico “homem cordial” da interpretação de Sergio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”. Um ser afetivo e amigável no universo caseiro, mas que exerce a mais brutal violência no espaço público. Ou é muito violento em casa e afável com seus amigos na rua. O comportamento depende das exigências do espaço.

Tudo vai bem com um miliciano até o momento de sua revolta contra quem o contrata. É nesse ponto que a série “Os Outros” se torna sombria, alucinada e, por isso mesmo, mais “real”. No delírio das cenas, é possível decifrar o monstrengo em que se transformou o país. Sérgio reencena o pesadelo que é Anísio (interpretado por Paulo Miklos) no filme “O Invasor” (2001), de Beto Brant. Naquela história, dois empresários contratam um matador para assassinar um sócio deles numa empreiteira, mas o profissional do crime decide que pretende ser um sócio daqueles engenheiros.