O amor no tempo do buraco na camada de ozônio

O amor no tempo do buraco na camada de ozônio

Parece piada, mas, não é. Conheceram-se no enterro de um anão em Itu. Nenhum dos dois sabia nada do morto, a não ser que era um sujeito pequeno. Por isso, estavam ali. Tinham em comum o interesse incomum de comparecer aos velórios de criaturas humanas pitorescas. Vai entender cabeça de gente. Apesar de cultos, tinham dessas perturbações. E não tinha psicanálise no mundo que desse jeito naquilo.

Certa feita, ele presenciou o último adeus de um homenzarrão que sofrera de gigantismo, que demandou a contratação, às pressas, a preço de ouro — vocês bem sabem, leitores, o quanto alguns abutres enchem o bico de dinheiro arrancando sem dó a grana dos vivos que precisam enterrar os seus mortos — de um carpinteiro para fazer a emenda emergencial de dois ataúdes. Isso sem contar a contratação de doze homens fortes e bem nutridos para carregar o defunto até o buraco. Trabalho dobrado para os vermes.

Ela, por sua vez, tivera a sorte — notem como eu e os seres humanos somos estranhos — de comparecer ao velório de um gêmeo siamês adulto que, deprimido por conta de um amor não correspondido, metera um balaço na fuça, enquanto o irmão dormia. Imaginem o susto. Por que não separaram cirurgicamente os gêmeos quando ainda eram bebês, eu não sei dizer. O problema estava criado: ninguém fazia ideia de como sepultar o suicida sem levar junto o gêmeo que sobrara vivo, colado pela barriga, e que adorava a vida. Sinucas de bico nos perseguem a todo instante.

Ela era uma morena descomunal dotada de uma beleza irritante. Parecia Jesus nos bons e velhos tempos: por onde passava, arrebanhava apóstolos. Sobrevivia como fotógrafa profissional. Sua especialidade era o nu feminino. Ultimamente, optara em clicar mulheres anônimas, desconhecidas da mídia, que tivessem corpos bonitos como o dela, para realizar ensaios fotográficos domésticos, por exemplo: beldades nuas picando legumes, pregando botões numa camisa, escovando os dentes, curando as frieiras, estendendo roupa no varal, amamentando um pimpolho, pintando as unhas dos pés, assistindo à novela, lendo Gabriel García Márquez na varanda, urinando na grama. Tava cada dia mais difícil encontrar uma dona de casa disponível. A mulherada trabalhava que só.

O sujeito era filho único, vivia da renda de aplicações no mercado financeiro, pois herdara uma fortuna indecente dos pais que tinham morrido de causas nada naturais sob os escombros do World Trade Center, em Nova York — suponho que vocês se recordem daquele carnificina toda. Se o atentado foi merecido ou se não foi merecido, não vinha ao caso. Nunca mais precisaria trabalhar. O fato é que eles se afeiçoaram e a coisa acabou tomando um certo rumo.

Quando se encontravam, a temperatura média no planeta subia, pelo menos, três graus centígrados. Era um cataclismo reincidente que não deixava vítimas. Nem mesmo a vontade morria. O cubo de gelo, que a tudo assistia, boiava no copo de uísque sem reclamar de tanta ebulição. Sentia inveja deles. Sonhava em ser água oura vez. Então, derretia-se pelo casal.

Aliás, o degelo das emoções no reduto era de deixar qualquer verão da Cordilheira dos Andes no chinelo, um mero filete de cuspe escorrendo entre as pedras. Ali, não. Ali, no vão daquelas pernas esguias, que mais pareciam as Torres Gêmeas antes do tombo, a empreitada, de vã, não tinha nada. O sexo demolia-os. Amor? Que nada. Fazia bem uns dez anos que tinham desaprendido a amar.

Não estavam para brincadeira. Mais que um parque de diversões feito pensando em adultos, aquele apartamento era um laboratório aberto às experimentações. Quem sabe, Deus, o capeta, um ET ou um daqueles pesadelos intermináveis chamado destino os mantivesse presos ali, entregues à própria sorte. Um casal de camundongos não faria melhor. Descobrir com quem se está lidando demanda tempo, às vezes uma vida inteira, até se decepcionar no final. Ou não. Nunca se sabe.

Devoravam-se com o apetite dos boias-frias. Deitados sobre a cama. Em pé, sob o chuveiro. Flutuando em pensamento: nus, vivos, distraídos. Não foi nada fácil que ela o convencesse a experimentar o sexo tântrico. Homens, vocês devem compreender, têm pressa em derreter a lava. Mulheres, não. Mulheres são vulcões com preguiça de eclodir. Elas sabem das coisas.

Um dia, acordaram aturdidos com a notícia de que a paixão morrera ainda tão novinha. Nenhum dos dois compareceu ao velório. Ela foi fotografar mulheres peladas. Ele dormiu até às dez.

Ilustração: Joe McDermott