Novo filme da Netflix brinca psicologicamente com o público e mantém a ansiedade até a última cena

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Sacrificar a parte mais nobre de si no altar das oferendas dos outros acaba não sendo a melhor saída, por pior que a vida esteja. É esse justamente o primeiro erro da protagonista de “Minha Vida Perfeita” (2021), do polonês Łukasz Grzegorzek. Joanna Lisiecka, a professora de inglês vivida por Agata Buzek, é casada com Witek Lisiecki, interpretado por Jacek Braciak, diretor da escola em que trabalha. A mãe, personagem de Małgorzata Zajączkowska começa a se constituir mais um tópico na sua longa relação de preocupações por apresentar uma evolução constante do mal de Alzheimer, além dos filhos, homens feitos, mas ainda assim dependentes, e do neto, que um deles não tem condições de criar. Buzek pinta um retrato em tintas fortes dessa mulher às raias do desespero, cansada, cheia de obrigações que não são dela e sem tempo ou espaço para si mesma. O apartamento em que a mãe morava sozinha até começar a trocar o sal pelo açúcar ao preparar a comida e a limpar as janelas com óleo de canola é seu único refúgio no mundo e nele Jo decide viver a vida que imaginou que teria, sem abdicar da vida que já tem. Esse é seu segundo equívoco.

É óbvio o esforço de Grzegorzek em mostrar Jo como uma espécie de mártir, injustiçada e infeliz por forçada a acumular atribuições para as quais nem toda mulher — e nem toda pessoa está preparada. Justiça se lhe faça e que se diga que seus parentes, a exceção do neto, filho do filho mais velho, são todos parasitas, cada um a sua maneira. Nem mesmo a mãe é digna de maior comiseração do que pode despertar a doença degenerativa que lhe tolhe a racionalidade e a autonomia, uma vez que em seus momentos lúcidos nada faz a fim de amenizar o caos. Os demais lhe tomam uma energia que lhe faz falta, e em se analisando o caso do marido com mais cuidado, se conclui que ele é decerto o pior de todos. Witek compensa sua falta de pulso na condução da família pesando a mão na austeridade com que administra a escola e Jo, como sua esposa, é a primeira a sentir os efeitos dessa personalidade algo perversa, daí a necessidade de fazer do apartamento desativado seu escape. O que faz lá, entretanto, é o que verdadeiramente a compromete.

O filme só alça voo e se mantém no alto graças ao fascínio que o talento de Buzek é capaz de despertar. Sua Joanna lhe demanda uma capacidade de atacar o problema proposto em “Minha Vida Perfeita”. Para começo de conversa, o título do filme é, por evidente, uma ironia e a atriz absorve essa intenção sarcástica, conseguindo também se elevar a alturas ainda mais longínquas da personalidade da protagonista. Em que pese seus dissabores, Jo é leve, espirituosa, divertida e uma profissional extremamente dedicada e carinhosa para com seus alunos, a ponto de chamar um táxi para Monkey, de Julia Kuzka, ao se certificar, de uma forma meio estranha, que a garota não está bem. Talvez se perca exatamente por causa dessa necessidade de agradar, quiçá motivada por alguma carência espiritual que nada no mundo pode preencher, mas que um psicoterapeuta atento daria jeito. No que diz respeito a personagem de Kuzka, seu caráter enigmático mostra-se a chave a fim de se compreender um outro segredo, este da própria Joanna, relacionado ao pai da garota, Maciek, uma composição magnífica de Adam Woronowicz, também professor na escola.

O espectador é instado por Grzegorzek a julgar a conduta da personagem central de seu roteiro, ao passo que Joanna parece também nos jogar à cara nossos maus passos. É como se o filme fosse ele mesmo uma sessão de psicanálise de pouco mais de hora e meia (que parece muito menos, dada a fluidez do enredo), em que a protagonista deixasse a história por alguns instantes e viesse nos perguntar o que faríamos se tivéssemos uma vida como a dela, mas exigisse de cada um a resposta mais sincera, que podemos lhe dar, afinal ela nunca há de sabê-la. Ela, sim, está em desvantagem e todos queremos apontar-lhe o dedo e dizer-lhe umas verdades, e voltamos à vaca fria: se fosse conosco, agiríamos de outro modo? A bússola moral pela qual nos orientamos costuma apontar em direções menos tortuosas, como se a vida fosse todo o tempo uma estrada reta (e por essa razão meio tediosa) pela qual podemos transitar de olhos fechados.

O diretor centra a narrativa em Joanna, mas pode contar com as excelentes performances de Braciak e Woronowicz, que, como na trama, se prestam a uma boa fonte de estímulo a Buzek, de maneiras opostas, também como se assiste em “Minha Vida Perfeita”. A mistura agridoce de que resulta dispor numa mesma fôrma tipos tão distintos entre si — o que já havia feito em “Kamper” (2016) e “A Filha de Um Treinador” (2018) — é inusitadamente saborosa e fomenta o ambiente ideal para as elucubrações acerca da “moral e dos bons costumes”.

Łukasz Grzegorzek defende sua anti-heroína, não obstante Joanna seja capaz de se defender por si só. Essa sua postura abertamente imparcial é só para dizer, como se fosse necessário, que Jo é mesmo dona do seu nariz. O desfecho, atrevidamente libertário, fere suscetibilidades mais delicadas — e mais cínicas também —, mas se há uma qualidade que a arte e, por conseguinte, os artistas devem ter é a coragem e a coragem de escandalizar, não de um modo gratuito, mas com segundas e terceiras intenções. Essa coragem “Minha Vida Perfeita” tem de sobra.


Filme: Minha Vida Perfeita
Direção: Łukasz Grzegorzek
Ano: 2021
Gênero:
Drama/Comédia
Nota: 10