O homem saiu da caverna, mas a caverna não saiu do homem

O homem saiu da caverna, mas a caverna não saiu do homem

Deitado na sua banheira de nuvem, Deus ensaboa os sovacos com escuma dos olhos, enquanto assiste ao nada pródigo rebanho humano. “Sinto que poderia matá-los com as minhas próprias mãos”, ele pensa, vacilante, a duvidar da própria divindade. Perplexo, arrota. Do plano terreno, miúdos que nem poeira, espiamos abilolados para o céu trovejante: “Parece que vai chover”, comentamos, afetados por uma milenar e descomunal ignorância. Más notícias. O sangue parece talhar nas minhas veias. Não devia ter ligado a TV essa noite. Matadores de crianças sempre me tiram do sério. Mesmo sendo raquítico, intuo que poderia rolar pelo chão atracado com um infanticida desses num tétrico espetáculo pela sobrevivência. É óbvio: tamanha atrocidade em nada me fascina. Mesmo assim, percebo nas entranhas as cócegas da vingança. O pressentimento de brutalizar contra um semelhante simplesmente me assombra. Não há monstros maiores do que os comportamentos impensados. Nivelados por baixo, certos instintos primitivos deixam a caverna que há em mim numa plangente sede de justiça. Afundo o corpo na poltrona. Nenhuma equipe de mergulhadores experientes partiu no meu resgate. Estou acocorado na solidão. Minha boca padece seca de palavras. Meus olhos embaçam. Devo estar com aquele velho olhar de peixe morto. A polícia capturou o facínora, anuncia a repórter. E se fosse um filho meu nas mãos daquele lixo humano? Houve pouca evolução moral aqui dentro desde que descobri como fazer fogo usando um reles isqueiro ou uma garrafa de uísque. Quanto cinismo. Quanta arrogância. Quanta prepotência da minha parte queimar por dentro sem querer virar fumaça. Convenço-me de que não preciso de um porrete, de uma quadrilha de deputados federais adestrados ou do porte legalizado de uma arma. Por um instante, pressinto que o Arquiteto Maior do Universo deixa de lado a sua prancha de projetos e cogita me esmagar utilizando um de seus incensados polegares, porém, logo desiste do intento. Há coisas mais relevantes para se fazer no Paraíso, como recepcionar as mães com bolinhos de chuva, por exemplo. Em choque, percebo o meu corpo mais combalido que o de costume. Minha mente oscila, fazendo com que a palavra se desmanche na minha mente, as letras trocando de lugar: alma, lama, mala. Quisera esse porto inseguro partisse de mim em viagem. O telefone toca. É Maria do outro lado da linha. Leitora assídua dos meus textos na internet, ela anda preocupada com o meu bem-estar. Com aquele sotaque cantante lá do Sul, ela reclama que as últimas crônicas que publiquei andam lúgubres demais. Nada de mais, Maria. Sossegue. É só aquele velho sangue latino fervendo dentro do peito. Ela ri e desliga. Sim, Maria, eu ligo. E muito.

Para Maria Prinz.