Você não assistiu, mas deveria: suspense da Netflix é uma pequena obra-prima ignorada pelo público Andreas Bastiansen / Netflix

Você não assistiu, mas deveria: suspense da Netflix é uma pequena obra-prima ignorada pelo público

Os amantes têm sido figuras constantes no imaginário coletivo, muitas vezes inspirando o cidadão comum a alimentar fantasias de um casamento ideal — aceito pela sociedade —, enquanto mantém relações extraconjugais que, após algum tempo, resultam em egos inflados, corações partidos, mágoas profundas e, frequentemente, filhos negligenciados que, em desespero, tomam decisões drásticas.

Uma das primeiras narrativas a capturar o público com essa temática foi “Anna Kariênina”, escrita pelo novelista russo Liev Tolstói (1828-1910). Esta história fictícia de Anna Kariênina, casada com Alieksiéi Kariênin, um alto oficial do czar Alexandre II, e seu envolvimento com o Conde Vronsky, um oficial da cavalaria, causou um grande escândalo na aristocracia da Rússia imperial. Anna pede o divórcio, mas Kariênin, além de recusar, a impede de ver o filho. Mesmo assim, o casamento acaba, assim como o romance extraconjugal, levando Anna a um destino trágico. Tolstói, um homem com os pés na realidade, jamais imaginou que sua obra se tornaria uma das histórias de amor e desamor mais duradouras, adaptada cinco vezes para o cinema entre 1935 e 2012.

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), por outro lado, conseguiu expressar o sofrimento de seu personagem central, desiludido e ciente da impossibilidade de seu amor por Charlotte, prometida a Albert. Apesar de suas diferenças, Tolstói e Goethe, ambos com trajetórias bem-sucedidas e vidas longas (morreram aos 82 anos), tinham visões opostas sobre o amor e a vida, o que os torna complementares.

Barbara Rothenborg, diretora dinamarquesa, conseguiu capturar aspectos de Tolstói e Goethe em sua história sobre um casamento que deveria ter acabado, mas que persiste devido à vaidade e hipocrisia, resultando em uma loucura desenfreada. “Um Marido Fiel” (2022), um drama com toques de suspense, coloca a busca pela verdade acima da própria verdade. O roteiro de Anders Rønnow Klarlund e Jacob Weinreich foca em um casal aparentemente perfeito e feliz, mas cujas aparências escondem uma realidade diferente. Rothenborg explora os pequenos sinais que indicam a paranoia entre Christian e Leonora, ambos com pouco mais de quarenta anos, e seu filho Johan, de dezoito anos, que se recupera de um grave problema de saúde e está prestes a se formar no ensino médio.

Christian, um arquiteto bem-sucedido, vive com sua família em uma casa à beira do lago, perto de um bosque, e deve grande parte de seu sucesso profissional à sua assistente Xenia, com quem mantém um caso. A tranquilidade da família é abalada por um evento inesperado durante uma festa organizada pela empresa de Christian, o que desencadeia uma série de eventos trágicos.

A diretora explora bem a psicopatia dos protagonistas, dando a Wilkins material suficiente para desenvolver sua personagem, que se revela mais importante do que o esperado. Inicialmente, Xenia parece ser a vilã, mas Klarlund e Weinreich subvertem os papéis, revelando gradualmente a verdadeira natureza dos personagens, com a loucura de Leonora vindo à tona. Ex-violinista virtuosa, Leonora se recusa a abrir mão do marido adúltero e do casamento em ruínas por mero capricho. Nesse ponto, a narrativa assume um tom farsesco, lembrando o estilo de Adrian Lyne ou Brian de Palma, e conduz o filme a um desfecho catártico.

Ainda é cedo para prever como “Um Marido Fiel” será recebido por um público mais amplo, mas a direção de Rothenborg oferece 105 minutos de incertezas e boas oportunidades para o público exercitar seu instinto detetivesco enquanto assiste a uma conflagração de vaidades diabólicas em um verdadeiro circo de horrores.


Filme: Um Marido Fiel
Direção: Barbara Rothenborg
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10