Adaptado de peça de Alan Bennett, filme épico ganhador do Oscar, com Helen Mirren, está no Prime Video Divulgação / Channel Four Films

Adaptado de peça de Alan Bennett, filme épico ganhador do Oscar, com Helen Mirren, está no Prime Video

Em meu primeiro contato com “As Loucuras do Rei George”, quando da estreia trinta anos atrás, cheguei ao filme de Nicholas Hytner atraído, claro, pelo título jocoso, talvez já percebendo o despontar do espírito anarquista que, felizmente, nunca me abandonou. Por óbvio, hoje, adulto, ao rever o longa, milhões de ideias bem mais sólidas chegam-me à roda do pensamento, sem que eu tenha de abdicar de minha crença no livre-arbítrio e não apague da cachola a imagem de que monarquias são, sim, ditaduras com glacê, como sempre foram e continuarão sendo.

O roteiro de Alan Bennett, também autor da peça  homônima estrelada por Nigel Hawthorne (1929-2001), entra por meandros corajosos ao falar da decrepitude de um soberano que, cinquentenário, raspa na velhice na última década dos 1700 sem saber que sua senilidade devia-se a uma doença que, apesar de descrita por Hipócrates (460 a.C. – 370 a.C.) em 370 a.C., levaria ainda um quase um século para tomar a atenção da ciência.

A semelhança com o Shakespeare de “Rei Lear” (1606) é proposital, ainda que o diretor assuma mesmo sua vocação iconoclasta e exponha o momento de fraqueza do chefe de Estado do Reino Unido como parte de uma bem-urdida tragicomédia, em que os personagens centrais abdicam de seu caráter nobre para dar vazão a urgências humanas, demasiado humanas.

As loucuras do monarca coincidem com o primeiro sinal de prosperidade dos Estados Unidos após o movimento pela independência, entre 1774 e 1776, quando as tropas emancipatórias lideradas por George Washington (1732-1799) levaram a melhor nos enfrentamentos contra a Inglaterra de Jorge 3° (1738-1820), sua metrópole desde 1607. 

Transcorridos doze anos, George (respeitando-se a grafia anglo-saxã) não se conforma com a autonomia da agora ex-colônia, e Hytner faz essa sua obsessão, materializada pelo comportamento errático, vir a lume aos poucos. George acorda no meio da noite e sai pelos jardins do palácio, atacando damas de companhia e, o que mais conta aqui, incapaz de lembrar dos semblantes e dos nomes de seus rivais. A direção de arte de Martin Childs, ganhador do Oscar da categoria pela primorosa reconstituição dos cenários e adereços usados pela corte de George há mais de duzentos anos, distrai o público enquanto a trama se reveste de uma tensão inesperada e providencial.

Ao contrário do que se observou ao longo do século 20 com Elizabeth 2ª (1926-2022) e Charles, a convivência de Jorge 4º (1762-1830), o então Príncipe de Gales (1762-1830), com o pai foi marcada por tentativas de conspiração orquestradas pelo próprio herdeiro da coroa da Inglaterra, em poder de George desde 1760. Até que hábitos nada razoáveis, como mandar que seu séquito permanecesse de pé durante uma interminável sessão de “Greensleeves” (1580) executada ao som de diabólicos xilofones, demonstrem que as coisas exigem mesmo uma interferência.

Hawthorne e Rupert Everett mantém uma trama à primeira vista enfarosa quente até o desfecho sem grandes surpresas, mas pertinente, mas um terceiro elemento é o que confere o molho de que “As Loucuras do Rei George” pode se orgulhar.

Na pele da rainha Charlotte Meclemburg-Strelitz (1744-1818), Helen Mirren é ora doce, ora enérgica, sobretudo com o primogênito entre a dezena e meia de filhos de George a que dera a luz. Jorge 4º sucedeu ao pai em 29 de janeiro de 1820, quando da morte do rei louco, em decorrência de complicações da porfiria, uma incapacidade severa do sangue em transportar oxigênio para os órgãos, mormente para o cérebro. Jorge 4º morreria dez anos mais tarde, aos 68 anos. George resistira até os 81.


Filme: As Loucuras do Rei George
Direção: Nicholas Hytner
Ano: 1994
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10