Premiada nos 5 continentes, obra-prima chilena que foi aplaudida de pé em Cannes está na Netflix Divulgação / Dulac Distribution

Premiada nos 5 continentes, obra-prima chilena que foi aplaudida de pé em Cannes está na Netflix

No Brasil, muitas vezes percebido como um apêndice geográfico na América do Sul, existe uma realidade de interdependência viva e pulsante com seus vizinhos. Vivenciamos uma sensação de intrusos em nosso próprio território, sentindo-nos o membro desajustado e desvinculado dentro de um contexto familiar mais amplo. 

Apesar de nossos esforços em nos distinguirmos de nossos vizinhos sul-americanos, e vice-versa, é incontornável que nossa trajetória é profundamente entrelaçada. A atenção que recebemos de lideranças internacionais não é por acaso, refletindo nosso papel central no continente. Isto ficou evidente quando os Estados Unidos decidiram intervir decisivamente na política brasileira durante o governo de João Goulart, visando erradicar suas inclinações pró-Cuba. Esse tipo de intervenção não foi exclusivo do Brasil, mas se estendeu por toda a América do Sul, como se viu na Argentina, Uruguai e Chile em momentos subsequentes. 

“1976” é a estreia de Manuela Martelli na direção de longas-metragens. O filme insere-se no recente movimento do cinema chileno que visa perpetuar a memória dos anos de ditadura, em uma tentativa de garantir que tais episódios não sejam minimizados ou esquecidos diante de um conservadorismo ressurgente globalmente. 

O filme narra a história de Carmen, interpretada por Aline Küppenheim, uma mulher da alta classe média que enfrenta dilemas morais enquanto reforma a casa de praia da família. Em meio a esta paisagem idílica, ela conhece o padre Sanchéz (Hugo Medina), que revela a ela sobre um jovem ferido, Elías (Nicolás Sepulveda), que Carmen acaba por cuidar, descobrindo que ele é mais do que um criminoso; ele faz parte de um movimento de resistência à ditadura de Pinochet. 

Carmen, cuja juventude foi marcada pela aspiração frustrada de se tornar médica, encontra-se trabalhando discretamente para a igreja, sem que seu marido ou amigos suspeitem. Sua vida, aparentemente tranquila, esconde uma dualidade: enquanto organiza festividades familiares, também apoia clandestinamente ativistas políticos. Esse contraste é capturado de forma sutil pela cinematografia de Soledad Rodríguez, que usa uma paleta dourada para representar tanto o verão aparentemente tranquilo quanto a tensão latente sob a superfície. 

A trilha sonora composta por Mariá Portugal, junto com a excelente escolha de figurinos por Gabriela Varela e Pilar Calderon, complementa a narrativa, exibindo Carmen não apenas como uma figura estilosa, mas como uma mulher que, apesar de estar inserida na elite, luta internamente contra as expectativas impostas sobre ela e seu próprio desejo de desempenhar um papel mais substancial em um contexto de injustiças sociais. Este filme, portanto, não se configura como uma biografia completa de Carmen, mas como um vislumbre significativo em um período conturbado de sua vida, ilustrando como, mesmo os mais abalados pela elite, continuam firmes em suas posições privilegiadas. 


Filme: 1976 
Direção: Manuela Martelli 
Ano: 2022 
Gênero: Drama/Suspense 
Nota: 10/10