Poético e comovente, filme no Prime Video é um espetáculo cinematográfico Divulgação / Esfera Filmes

Poético e comovente, filme no Prime Video é um espetáculo cinematográfico

“Terra Firme” começa e termina no mar, da mesma forma que seus personagens transmitem a sensação de que sentem-se mais à vontade no reino de Netuno do que partilhando das comezinhas agruras capazes de atormentar um espírito um tanto aprisionado na fina teia da vida real. O italiano Emanuele Crialese situa uma família empobrecida numa remota ilha siciliana, e logo todos nos convencemos de que essa história realmente teria de se passar no sul da Itália, uma terra de líricos sortilégios onde até os problemas mais obscuros ganham uma dimensão farsesca.

O roteiro de Crialese e Vittorio Moroni alcança essa proeza, de amolecer assuntos sérios e espinhosos como rochedos emulando a própria natureza sábia do oceano, sem que jamais pareça que o drama daquelas pessoas some na imensidão da paisagem, misto de sal e a luz dourada que, espera-se, tudo cura. A fotografia de Fabio Cianchetti funciona, a propósito, amolda-se ao texto para também fazer da narrativa uma crônica acerca de uma das necessidades mais básicas dos seres humanos, ignorada e, pior, tratada como um enrosco sem qualquer solução que vigore ainda no nosso tempo. 

Pode-se dispor de toda a ajuda que oferece a sorte, mas uma vez que somos nós mesmos os senhores de nossas escolhas, nossos juízes e nossos próprios carrascos, cabe-nos somente a nós a última palavra e só nossas são a culpa ou a fortuna pelo destino que nos aguarda, ainda que as artes, a ciência, o pensamento filosófico ofereçam ao homem ferramentas afiadas quanto a arredondar as quinas mais incômodas e burilar a vida de forma a tolerá-la sem o brilho falso das vãs quimeras com que costumamos nos iludir.

As luzes e sombras, reentrâncias e saliências, altos e baixos, toda a ambivalência que pode haver no espírito do homem liberta-nos da perdição que nunca deixa de espreitar a natureza humana, mas lança-nos também no limbo de realidades suspeitas que, eivada de fantasia a mais nefasta, nos conduz por entre tantos outros abismos, mais rasos e mais fundos, universo paralelo e mágico, santo e diabólico, onde se dão crimes de toda sorte, mocinhos e vilões trocam de roupa e de lugar sem nenhuma cerimônia, arrevesa-se a natureza das emoções e atira-se ao jogo o que deveria ser guardado e ficar para sempre, porto seguro para navegantes cansados das águas procelosas da descrença de tudo. 

De um verão para o outro, o turismo passa a ser mais lucrativo que a pesca, o que leva a família de Ernesto a especular sobre novos jeitos de ganhar a vida. Malgrado não apareça com igual destaque que os outros, o velho pescador vivido por Mimmo Cuticchio se mantém por 88 minutos como o esteio daquele pequena nação como que alheada do mundo, preocupada em conservar hábitos insignificantes para os demais oito bilhões de moradores do globo terrestre, como celebrar com emocionante pompa o terceiro aniversário de morte de um dos filhos do patriarca, todos, claro, devidamente enlutados, usando preto da cabeça aos pés. Talvez a esperança do clã algum dia se materialize na figura um tanto avoada de Filippo, filho do morto, mas até que esse momento chegue, eles  precisam mobilizar-se a fim de conseguir um empréstimo e reformar o casebre que o Mediterrâneo tratou de deteriorar com suas constantes investidas. O diretor vai entrando com mais força na abordagem sociológica de um gênero muito específico de miséria ao apresentar um barco ocupado por refugiados etíopes, entre os quais estão Sara e seu filho. Timnit T. é o elemento que faltava para que se adivinhe como todos ali hão de chegar ao desfecho: tristes como no início. Na solidão do mar. 


Filme: Terra Firme  
Direção: Emanuele Crialese 
Ano: 2011 
Gênero: Drama 
Nota: 9/10