Filme que inspirou a série vista por 1,5 milhão de pessoas no dia da estreia está na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Filme que inspirou a série vista por 1,5 milhão de pessoas no dia da estreia está na Netflix

Não é tão simples para alguém de hábitos comedidos e pautados pela sincera moral das ruas entender as extravagâncias da chamada burguesia, ricos fúteis e grosseiros agarrados a costumes que quase sempre implicam na degradação de alguém — em especial de alguém que sabem indefeso até porque, caso esbocem qualquer defesa, terminam apanhando mais. No expediente artístico, contudo, esses mesmos grã-finos patéticos desfrutam de uma generosa medida de tolerância, que não raro metamorfoseia-se em simpatia e, a depender da habilidade de seus intérpretes, vira arrebatamento.

O estrondoso sucesso do vilão de “O Talentoso Ripley” levou a romancista texana Patricia Highsmith (1921-1995) a dedicar-lhe uma série inteira naquele pré-histórico 1955, e das frias páginas do livro René Clément (1913-1996) conseguiu fazer “O Sol por Testemunha” (1960), que coincide com o filme de Anthony Minghella (1954-2008) na sofisticação estético-narrativa, na ousadia dos enquadramentos e, por óbvio, no brilho das atuações. Brilho, aliás, é o que não falta à versão de Minghella, atributo que o diretor-roteirista Steven Zaillian transforma num noir delicado, mas incisivo, destacando a monstruosidade do personagem central, evidente desde a primeira tomada de seu primoroso “Ripley” (2024), série em oito episódios que reoxigena a talentosa Highsmith. 

No roteiro de Minghella, ao contrário do que se tem no filme de Clément, Thomas Ripley e Richard Greenleaf, sua futura vítima, começam nos ambientes que o destino lhes reservara: aquele entra sem convite e com um paletó emprestado na festa que acontece no terraço de um edifício em Manhattan ao passo que o segundo está num giro pela Europa, por razões misteriosas que o diretor-roteirista esclarece só na iminência da conclusão. Um casal de milionários se achega do penetra a fim de saciar uma curiosidade que só poderia fazer algum sentido num enredo assim, e logo são confidentes uns dos outros; é quando a Ripley é oferecida a chance de ir ao Velho Continente para buscar o filho dos ricaços, tudo às custas dos dois, que ainda oferecem mil dólares pelo incômodo.

Na vida real, a mera hipótese de Ripley aceitar o tal negócio já seria o bastante para que acendessem faróis de alerta nos olhos daqueles pais esmerados e irresponsáveis, cujo desespero os empurra para a maior sandice de suas vidas. A essa quadra dos acontecimentos, a fotografia de John Seale e a edição de Walter Murch não deixam mais que o público se desvencilhe, e um corte seco nos leva a uma praia na Costa Amalfitana, no sul da Itália, onde Dickie e a namorada, Marjorie Sherwood, usufruem de tudo que o dinheiro é capaz de comprar. O desempenho de Jude Law está umbilicalmente coeso ao de Gwyneth Paltrow, e isso, por paradoxal que soe, leva-nos a crer que o verdadeiro casal aqui é mesmo Law e Matt Damon. Mas uma cena na transição do segundo para o terceiro ato demole essa certeza: Ripley só se une a si próprio, numa empreitada assassina por achar brechas para tornar reais seus delírios de grandeza — e o que ele faz com Peter Smith-Kingsley, de Jack Davenport (e o que decerto fará com Meredith Logue, a nova conquista feminina, com Cate Blanchett na medida exata de classe e impostura), ratificam sua psicopatia uma vez mais.  

Visionária, Highsmith até parecia enxergar com sete décadas de antecedência a debacle de uma elite superficial, oca, apodrecida, que paga pelas consciências que aquiescem em se vender o preço baixo que elas determinam. Minghella ressuscita essa aura irrequieta da escritora, desafiando a plateia a odiar Ripley de verdade, o que, admitamos, não é fácil. Todos temos um Ripley prontinho para sair do porão, e em muitas circunstâncias à procura de recompensas bem mais ordinárias. 


Filme: O Talentoso Ripley 
Direção: Anthony Minghella 
Ano: 1998 
Gêneros: Thriller/Drama 
Nota: 9/10