O filme na Netflix conta a história da mulher que inspirou milhões de pessoas em todo o mundo Divulgação / Kolbe Arte

O filme na Netflix conta a história da mulher que inspirou milhões de pessoas em todo o mundo

Existem alguns problemas em “Madre Teresa: Amor Maior Não Há”, a hagiografia de David Naglieri sobre uma das maiores lideranças religiosas de todos os tempos. Filha de um próspero comerciante kosovar e uma dona de casa, ambos católicos sem receio de manifestar sua fé na Escópia das décadas finais do século 19, Anjezë Gonxhe Bojaxhiu (1910-1997) atravessou o mundo para afirmar sua vocação para o serviço a Deus. Aos dezoito anos, Anjezë deixou a capital do que hoje é a Macedônia do Norte, região tradicionalmente muçulmana, desde a dominação otomana três séculos antes, e viajou para Dublin, na Irlanda, determinada a ingressar no convento das Irmãs de Nossa Senhora de Loreto, ordem voltada à educação, pela qual acreditam que todas as outras mudanças se operem na vida de um fiel sincero — as espirituais, inclusive.

Dono de uma obra prolífica em trabalhos sobre vultos da Igreja — a exemplo do polonês Karol Wojtyla (1920-2005), o papa João Paulo 2º, cuja atuação encarniçada foi fundamental para que se debelasse o regime comunista no Leste Europeu, como visto em “Liberating a Continent: John Paul II and the Fall of Communism” (“libertando um continente: João Paulo II e a queda do comunismo”, em tradução literal), lançado em 2018, e documentários em que tece críticas mordazes acerca de eventos controversos, caso de “Truths and Myths of the Vietnam War” (“verdades e mitos da Guerra do Vietnã”, idem), de 2024 —, Naglieri acrescenta uma camada extra de misticismo (a começar pelo título) à figura de Madre Teresa de Calcutá, uma albanesa que adotou a Índia e fez do mundo um imenso palco para a difusão do verdadeiro evangelho, abafando polêmicas que passaram a rondar aquela mulher pequena, magra, de rosto sulcado contornando um sorriso luminoso quando de sua projeção midiática, e se concentrando no alcance das ações filantrópicas das Missionárias da Caridade, congregação fundada por ela depois do desapontamento com suas funções na Irlanda.

O diretor-roteirista toma por base as impressões autobiográficas de Madre Teresa, reunidas no volume homônimo publicado em 1977, e leva seu filme aos cinco continentes por onde Madre Teresa passou. No Brasil, Naglieri colhe o depoimento de dom Mário Antônio da Silva, bispo de Boa Vista, que exalta o trabalho das discípulas da freira junto aos venezuelanos que imigram para a capital de Roraima fugindo do desemprego e da fome cultivados pela ditadura Nicolás Maduro. Enquanto escolhe o próximo lance da história contemporânea de sua biografada, uma versão mais enérgica da baiana Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), a Irmã Dulce, Naglieri volta à Albânia de há quase cem anos e reconstitui o êxodo da própria Anjezë, até que a narrativa tome corpo e se fixe na metade do século passado, quando, em 1950, Madre Teresa funda em Calcutá, em Bengala Ocidental, nordeste da Índia, sua casa de acolhimento a moradores de rua e enfermos, perto do famoso Templo Kalighat Kali, em louvor à deusa Kali, talvez a primeira grande controvérsia a pautar a jornada da religiosa.

Com o lançamento de “Madre Teresa: Amor Maior Não Há”, tornaram a pulular questões que conspurcam o legado de compaixão e solidariedade da missionária, como a malversação de doações milionárias de megaempresários de todo o planeta e de recursos públicos na construção e mantença das mais de 750 instalações que conseguiu abrir, do Haiti aos Estados Unidos, passando por África, Filipinas e, claro, Índia. A que causa mais espécie, sem dúvida, é a acusação de deixar seus pacientes morrerem em decorrência do atendimento improvisado e amador dos voluntários, as únicas pessoas que encontrara dispostas a tratar de gente com tuberculose, hanseníase e aids, a nova chaga das sociedades contemporâneas, logo tida como a mais perniciosa dentre todas essas, justamente por trazer consigo o estigma do sexo promíscuo e da drogadição. E estigma nunca combinou com a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 1979, canonizada pelo Francisco, em 4 de setembro de 2016, depois de comprovada a cura improvável do engenheiro paulista Marcílio Haddad Andrino. Peregrina e santa, Madre Teresa de Calcutá é também um pouco brasileira.


Filme: Madre Teresa: Amor Maior Não Há
Direção: David Naglieri
Ano: 2022
Gêneros: Documentário/Biografia 
Nota: 8/10