Sem tempo para sentir

Sem tempo para sentir

Quando digo — e escrevo — que a humanidade não tem jeito, a reação das pessoas é variável. Muitos torcem o nariz, retrucam que estou exagerando, que a natureza do ser humano, regra geral, é boa. Outros, impacientes, acusam-me de pedantismo, de pessimismo, de falta de Deus no coração ou de Prozac na cabeça. A minoria cala, pensa e me dá ouvidos; consola e admite que a situação é, sim, degradante, mas, apesar das profundas dificuldades, sustenta ser necessário perseverar nos esforços de diminuir a injustiça e a desigualdade social que são, em essência, a origem de todos os males que assolam a humanidade.

É sabido que as redes sociais da internet são terreno fértil para a disseminação de fake news, de tolices e de desgraceiras. Nessa semana, repercutiu fortemente a história de um homem velho, decrépito, que foi levado até uma agência bancária, numa cadeira de rodas, por uma mulher que se apresentava como sua parente e sua cuidadora. Pelo que foi noticiado, o velhote teria morrido a caminho do banco ou, mesmo, dentro dele, enquanto aguardava atendimento.

Fato é que o idoso teve o óbito suspeitado pelos funcionários, o que foi confirmado pela equipe de saúde que compareceu ao local, juntamente com a polícia. Câmeras do circuito interno de segurança gravaram as cenas do homúnculo pálido, caquético, inerte, desacordado, acompanhado pela mulher que insistia para que o mesmo assinasse um documento indispensável referente ao contrato de financiamento feito no nome dele, no valor de dezessete mil reais. Resta óbvio que gente morta ou comatosa não segura caneta. Constatada o falecimento do idoso, o seu corpo foi encaminhado para o Instituto Médico Legal, a fim de passar pela necropsia; e a mulher, detida pelas autoridades policiais.

A capacidade humana para a crueldade não encontra paralelo no reino animal. Só o homem tortura outro homem, por exemplo. De tal sorte que a maldade permeia o planeta há milênios, especialmente as nações pobres ou emergentes, onde os abismos socioeconômicos são mais profundos. Perder a capacidade de se indignar parece outro preço nefasto que se paga pela hiperconectividade atual e pela altíssima velocidade da informação. Correria generalizada. Ninguém tem tempo para sentir. Logo, a fim de evitar a piora da saúde mental, evito me inteirar das mais recentes barbaridades humanas, fartamente publicadas nas mídias digitais e nos desagradáveis programas televisivos que praticam o jornalismo policialesco.

Ocorre que o episódio do senhorzinho que faleceu dentro do banco, em busca de dinheiro emprestado, impingiu-me a determinadas reflexões. O que levaria uma pessoa a protagonizar um ato tão infame, ao expor um sujeito em estado terminal à tamanha humilhação? Seria a mulher portadora dalgum distúrbio mental? Atenderia ela ao desejo, às necessidades prementes, inadiáveis, do parente moribundo? Seria uma fraude, um golpe criminoso para surrupiar-lhe o dinheiro? Ou apenas um insuspeito, um puro ato fraterno e solidário da cuidadora, a fim de suprir o sustento do seu assistido?

Espera-se que a polícia civil apure os fatos e que a justiça seja feita, caso se comprove algum crime. Quanto às reações das pessoas, sucedeu o que já se esperava: mostras de indignação, de raiva e de tristeza; rompantes de gozação e de zombaria; a mais silente e abominável indiferença. Tudo muito rápido e efêmero. Até o próximo show de horrores. Enfim, a revelação de que a suposta vilã dessa história seja, na verdade, uma demente, quer dizer, uma cidadã incapaz de responder pelos seus próprios atos, poderia redundar numa saída minimamente digna para um episódio tão deplorável.

O fato ocorrido naquela instituição bancária que empresta dinheiro a juros exorbitantes para gente sã ou moribunda, poderá, quem sabe, suscitar debates relevantes acerca do que realmente importa: a miséria, a falta de educação e de cultura, a desigualdade econômica, o etarismo, a violência doméstica contra os idosos ou o seu abandono pelos familiares, dentre outras nuanças torpes de uma sociedade adoecida, anestesiada, resignada com a injustiça, incapaz de sentir compaixão e de praticar empatia.

Não é Deus, nem é remédio, o que me falta. Mas, a capacidade simplista de crer na redenção da humanidade, a fim de dirimir, quem sabe, as procelas do desencanto e do desconsolo que há tempos me afligem.