A bula do crime: o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio

A bula do crime: o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio

É quase impossível encontrar uma autêntica indiferença pelo fenômeno que chamamos de “seita”. Em geral, a reação das pessoas tende a variar entre o medo, a repulsa e o fascínio. Os membros das religiões organizadas, por exemplo, sempre têm na manga alguma passagem da sua revelação que alerta contra os “falsos profetas”. Já os ateus inclinam-se a colocar as seitas na mesma categoria “acientífica” das religiões (há exceções, já que existem seitas que possuem uma roupagem científica).

Os governos, por seu turno, foram convencidos a temê-las por argumentos convincentes como o cadáver de Sharon Tate e o envenenamento em massa em Jonestown. Segundo um artigo de Hubert Seiwert, professor de Religiões Comparadas na Universidade de Leipzig, houve diversas reações governamentais relativas ao “problema das seitas”: em 1996, a Assembleia Nacional Francesa publicou um relatório sobre as seitas no país, concluindo que elas representavam um fenômeno ameaçador; no mesmo ano, na Alemanha, o “Bundestag” instituiu uma comissão para tratar das “seitas e grupos psíquicos”; em 1997, a Rússia editou uma lei que limitava os direitos das “novas religiões”; em algumas ocasiões, o “problema das seitas” também foi tratado pelo Parlamento Europeu.

A França, em particular, adota uma definição de seita imbuída de hostilidade: “Associação de estrutura totalitária que declara ou não motivos religiosos, cujas ações atentam contra os direitos humanos e o equilíbrio social”. No entanto, o medo e a repulsa convivem com o fascínio nada secreto do grande público, evidenciado pelas centenas de séries, filmes, documentários e livros sobre o assunto. Dizendo em português claro: as seitas vendem.

Exemplo disso foi a publicação de “Underground – o Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa” (1997), um dos raros escritos de não ficção do escritor Haruki Murakami. O livro vendeu 270 mil cópias da edição japonesa em apenas dois meses após o lançamento e foi traduzido para diversos idiomas. 

A obra traz uma série de entrevistas que o autor realizou com as vítimas sobreviventes e com os membros da “Aum Shinrikyo”, a seita apocalíptica responsável pelos atentados no metrô de Tóquio em 20 de março de 1995. O volume também contém um ensaio com as reflexões do próprio Murakami sobre o ataque, no qual ele tece várias críticas ao sistema japonês de gerenciamento de crises, às análises superficiais da mídia e à sociedade japonesa de um modo geral.

Murakami teve seus próprios motivos para escrever o livro. Vivendo no exterior há mais de nove anos, queria compreender o país que deixou.  Ao mesmo tempo, na segunda metade dos anos noventa, o ataque no metrô de Tóquio era um tema quase incontornável. Por si só, o Japão sempre despertou a curiosidade do mundo, adicione-se na equação uma (sempre popular) seita apocalíptica e um atentado terrorista, e o resultado será uma história irresistível. Não é à toa que o livro vendeu tão bem.

Mas qual é a origem desse ataque brutal? Para compreendê-lo é necessário, antes de mais nada, conhecermos a história de Shoko Asahara, o fundador da seita Aum Shinrikyo. Seu verdadeiro nome era Chizuo Matsumoto e ele era o quarto filho de uma família humilde de fabricantes de tatame na província de Kumamoto, conhecida pelo Monte Aso, um dos vulcões mais ativos do mundo, e pelas fábricas da Honda.

O “guru” nasceu em 2 de março de 1955 com glaucoma primário infantil. A condição impede que o líquido seja drenado da parte frontal do olho, causando o aumento da pressão dentro do olho. Por causa disso, ainda jovem, Asahara perdeu totalmente a visão do olho esquerdo e parcialmente a do direito. Devido à cegueira, sua família o rejeitou, tendo sido deixado, aos 6 anos, em uma escola para cegos.

Lá, já dava mostras de uma personalidade agressiva, espancando e extorquindo as outras crianças. Durante a adolescência, começou a ter aspirações políticas. Dizia aos colegas que se tornaria primeiro-ministro do Japão (para a sorte dos japoneses, isso não aconteceu). Depois de se formar no ensino médio, tentou ingressar na Universidade de Tóquio para estudar Política, mas não foi admitido. Numa radical mudança de rumo profissional, começou a estudar acupuntura e medicina tradicional chinesa. São profissões tradicionais para cegos no Japão, desde que, em 1680, o acupunturista cego Waichi Sugiyama inventou o “shinkan”, um tubo que reduz a dor na inserção das agulhas. Logo depois de aprender o ofício, Asahara abriu uma loja de medicina chinesa em Tóquio. Como não tinha licença, foi condenado em 1981 a pagar uma multa de ¥ 200.000 por exercício ilegal da profissão de farmacêutico. Nesse meio tempo, casou-se e teve seis filhos.

O estudo da medicina tradicional chinesa levou Asahara a se interessar pelo oculto. De forma autodidata, estudou astrologia chinesa e as partes mais esotéricas do budismo, do hinduísmo, do taoismo e do cristianismo. Começou a praticar yoga e meditação, e deixou o cabelo e a barba crescerem. Foi nessa época que Chizuo Matsumoto se transformou em Shoko Asahara (Shoko significa em japonês algo como “uma oferenda de incenso” e Asahara é um sobrenome tipicamente aristocrático).

No começo dos anos 80, Asahara fez várias peregrinações para a Índia. Em algumas dessas viagens, inclusive, encontrou-se com o 14º Dalai Lama, que reside no país (até hoje) desde 1959, quando o governo tibetano se exilou na cidade de Dharamshala. Posteriormente aos ataques, os registros desses encontros repercutiram muito mal para a imagem do Dalai Lama, sendo amplamente utilizados pelo governo chinês para fins de propaganda.

Em 1987, Asahara fundou a Aum Shinrikyo (literalmente “Verdade Suprema”). Um pequeno grupo que abordava os transeuntes das movimentadas ruas de Tóquio oferecendo aulas de meditação e de yoga.

O “corpus” doutrinário da seita era uma verdadeira salada “New Age”. Para começar, Asahara declarava ser uma espécie de figura messiânica, sucessor do próprio Buda (alegava, inclusive, ser capaz de levitar). Conceitos budistas e hindus conviviam com passagens bíblicas e teorias conspiratórias envolvendo os judeus, a maçonaria e a família real britânica. Para completar, um apocalipse nuclear estaria muito próximo —uma decorrência da “iminente” guerra entre o Japão e os Estados Unidos.

Visando a cooptação de novos seguidores, Asahara dizia ser capaz de curar doenças e conduzia rituais iniciáticos à base de LSD. Além disso, o grupo publicava mensalmente revistas como a “Vajrayana Sacca” e a “Enjoy Happiness”, nas quais era ensinado “o caminho para a felicidade”. Toda essa propagando se mostrou tremendamente eficaz entre os estudantes universitários da elite japonesa. Com o crescente aumento do número de membros, em 1989 o grupo recebeu o status oficial de “organização religiosa”.

Nesse mesmo ano, a Aum Shinrikyo deu a sua primeira grande demonstração de violência. Após o vazamento da informação de que Tsutsumi Sakamoto trabalhava numa ação coletiva contra o grupo, membros invadiram a casa do advogado. Sakamoto, sua esposa e seu filho recém-nascido receberam injeções letais de cloreto de potássio. Ato contínuo, o casal foi espancado e o bebê foi sufocada. Os restos mortais dos três foram desovados em áreas diferentes para que a polícia não conseguisse perceber a conexão entre os incidentes (apenas depois dos ataques no metrô de Tóquio, em 1995, que a polícia finalmente conseguiu elucidar o crime).

Em meados de 1992, o grupo começou a produzir clandestinamente gás sarin, um líquido sem cor e sem cheiro utilizado como arma química em consequência do seu efeito devastador no sistema nervoso. Em 1991, a Resolução 687 da ONU havia classificado a substância como arma de destruição em massa, após a repercussão do seu uso no Iraque.

Em 1994, Shoko Asahara ordenou que a sua produção caseira de sarin fosse utilizada para atacar a cidade de Matsumoto. A motivação seria uma vingança contra a população local que fizera um abaixo-assinado pela não construção de uma fábrica e de um escritório da Aum Shinrikyo nos arredores da cidade (a seita detinha negócios no ramo de eletrônicos, restaurantes e diversos empreendimentos imobiliários). O ataque também seria direcionado a três juízes que decidiriam em breve sobre uma disputa imobiliária envolvendo a seita.

Durante a noite de 27 de junho de 1994, membros da seita lançaram uma nuvem de gás sarin que flutuou pelo bairro onde viviam os magistrados. 247 pessoas foram hospitalizadas e 7 foram mortas. Um residente afetado ficou em coma por 14 anos, vindo a óbito apenas em 2008.

No ano seguinte, foi a vez do atentado que ficaria conhecido como “o pior no país desde o fim da 2ª Guerra Mundial”. Após ser avisado por um informante sobre uma batida policial programada para ocorrer nas instalações da seita, Asahara ordenou o ataque a três linhas do metrô de Tóquio (Chiyoda, Marunouchi e Hibiya) durante a hora do rush. Seu objetivo seria adiar a ação da polícia. A ordem também seria uma forma de “acelerar o apocalipse”, que Asahara dizia que estava na iminência de acontecer.

Seguindo as ordens do “guru”, na manhã do dia 20 de março de 1995, cinco membros das seitas se dirigiram ao metrô com sacolas plásticas contendo sarin em estado líquido e guarda-chuvas pontiagudos. Eram Masato Yokoyama, Yasuo Hayashi, Kenichi Hirose, Ikuo Hayashi e Toru Toyoda. Eles carregavam seringas com sulfato de atropina, um antídoto do sarin, caso inalassem por acidente um pouco da substância. Praticamente todos tinham formação em ciências exatas ou biológicas.

Entre 7h46 e 8h46, um após o outro, os homens furaram as sacolas contendo a substância letal. Logo em seguida, saíram da estação, sendo auxiliados por cinco pilotos de fuga previamente posicionados.

Dentro de pouco tempo, os passageiros começaram a sentir sintomas como vômitos, desmaios, convulsões e sangramento nasal. Foi um verdadeiro caos. Ao todo, 13 passageiros foram assassinados e mais de 4.700 foram hospitalizados devido à intoxicação.

Os sobreviventes entrevistados no livro de Murakami relataram que durante os ataques prevaleceu um grande silêncio. Por mais que estivessem passando mal, os passageiros apenas aguardaram as portas dos vagões se abrirem e se dispersaram logo em seguida. Ninguém questionava o que estava acontecendo. Quem teve o azar de desmaiar, praticamente não recebeu ajuda. E, apesar da inalação de uma grande quantidade de gás durante os ataques, a maioria das pessoas foi direto para o trabalho. Isso acarretou várias internações hospitalares posteriores.

Em 16 de maio de 1995, a polícia japonesa cumpriu vários mandados nas instalações da Aum Shinrikyo. Quase todos os membros, incluindo o próprio Shoko Asahara, foram presos. A batida revelou o sofisticado poderio militar do grupo. Na sede do culto em Kamikuishiki, por exemplo, a polícia encontrou explosivos, armas químicas e um helicóptero militar russo Mil Mi-17.

Em 2004, o líder da seita e outros doze integrantes foram condenados à morte pelo ataque. A pena capital no Japão é o enforcamento. De tempos em tempos, o governo do país monitora o apoio à penalidade. Em uma das pesquisas mais recentes, realizada em 2015, a pena de morte recebeu o apoio de 80,3% do público, enquanto 9,7% se manifestaram pela sua abolição. Como o Japão é um país desenvolvido, sendo o único membro do G7, além de os Estados Unidos, a manter a pena de morte, é alvo de muitas críticas de organizações internacionais de direitos humanos. Seja como for, Asahara foi enforcado em 2018.

Até hoje, os ataques no metrô de Tóquio são uma ferida aberta na sociedade japonesa. Em 2008, o governo promulgou uma lei que concedia indenizações às vítimas do ataque. Mais de 5.200 pessoas buscaram o direito. Dentre elas, cerca de 47 indivíduos foram reconhecidos como portadores de deficiência permanente, consequência direta do atentado terrorista.

Talvez o mais impressionante de tudo seja que a Aum Shinrikyo não foi extinta depois dos ataques e das subsequentes prisões de seus membros. As autoridades japonesas tentaram proibir totalmente a seita invocando a Lei de Prevenção de Atividades Subversivas de 1952, mas essa iniciativa não teve sucesso. A Comissão de Exame de Segurança Pública, responsável por avaliar tais pedidos, decidiu contra a proibição completa do grupo em janeiro de 1997.

Em 2000, a seita mudou o nome para “Aleph”. As ideias mais perigosas foram removidas da “doutrina oficial” do grupo e um fundo foi criado para compensar as vítimas dos ataques no metrô de Tóquio. Até hoje, regularmente, protestos acontecem do lado de fora das instalações da seita ao redor do Japão. O grupo é monitorado de forma permanente pelas forças de segurança japonesas. Segundo um levantamento feito em 2013, o grupo tinha aproximadamente 1.650 membros no Japão e 160 na Rússia.

Apesar disso, em 2022, a organização foi retirada da lista de organizações terroristas do Departamento de Estado dos Estados Unidos.