Filme de suspense e mistério que estreou hoje na Netflix vai te convencer a ficar em casa neste fim de semana Divulgação / Netflix

Filme de suspense e mistério que estreou hoje na Netflix vai te convencer a ficar em casa neste fim de semana

Nunca é fácil estar fora da bolha. Essa sensação de alheamento, de sempre ter de se preocupar com o ponto de vista que os outros poderão ter a nosso respeito é uma parte expressiva do cotidiano de Elsa, garota que defende até as últimas consequências sua origem numa comunidade que vai se deixando enredar nas armadilhas do racismo num movimento perigoso e que só tende a se expandir. Em “Herança Roubada”, a norueguesa Elle Márjá Eira se detém sobre o preconceito cada vez menos dissimulado contra os sâmis, o povo nativo da Lapônia, território que compreende as áreas mais ao norte da Noruega, Suécia, Finlândia e da península de Kola, na Rússia.

Eira toma por base o romance homônimo de Ann-Helén Laestadius ao acompanhar a luta de Elsa por igualdade de direitos e cidadania num lugar onde a xenofobia tem sido a tônica, conjuntura ainda mais trágica com o avanço do aquecimento global. O texto de Peter Birro arranha esse segundo argumento,  mas vai fundo no drama dos jovens sâmis que, sem conseguir trabalho e dependendo com uma frequência desesperadora da ajuda do Estado, derivam para o crime ou acabam dando um fim à própria vida, retrato sem floreios da ruína de uma tradição. 

O mundo é um ambiente vasto demais, plural demais, insensível a quase todos os sonhos a que gente comum se lança com um afinco entre comovente e desesperada, feito um mendigo sobre um prato de sopa numa noite longa de inverno rigoroso. Tentando achar seu espaço em meio ao caos da vida, fonte de toda glória e toda perdição, o homem forja sua natureza indomável na esperança de que esse esforço ajude-o a sufocar as ilusões que sabe impossíveis, quiçá até tresloucadas, rebaixando-se, submetendo-se aos desmandos do estabelecido e de seus donos, ansiando pelo empuxo que, algum dia, permitir-lhe-á chegar à superfície e ver o sol, que nasce para todos, mas distribui seu calor entre uma privilegiada minoria.

A qualquer momento da vida podemos nos sentir perigosamente sós, como se desterrados em nossa própria existência, presos num silêncio atroador, implorando pela compaixão de alguém, e quanto mais consome-nos a angústia, mais nos apercebemos do quão perdidos estamos  em nosso próprio desespero, ansiando por um salvador que não vem nunca, que não nos quer conhecer, que nos tem desprezo. O homem passa a vida temendo a postura que assume diante de dificuldades que lhe atravancam o prosaico dia a dia, por mais que pense e repense suas atitudes, justamente porque sabe que cedo ou tarde (e quase sempre é bem cedo, muito antes do que se gostaria) o destino há de lhe mandar a conta e ele há de ser obrigado a se explicar sobre tudo quanto fez — e tanto mais sobre o que deixou de fazer. 

Num campo coberto de neve, uma manada de renas pasta até que a monotonia da cena dá lugar às pequenas barbáries da vida campestre. Elsa e o pai, Nils-Johan, de Magnus Kuhmunen, cindem as orelhas do filhote da rena que a menina elege como o mais bonito, e a partir de uma imagem um tanto onírica, angelical até, a diretora conduz seu filme por uma crítica ora serena, ora feroz a respeito da perseguição aos sâmis. Dez anos depois, Elsa é uma militante orgânica pela resistência de seu povo, e Elin Oskal encarna essa heroína improvável falando o sâmi, idioma de seus ancestrais, que domina perfeitamente. Ao longo de 105 minutos, essa busca pelo purismo nunca degenera no enfaroso ou no pedante, um dos trunfos de “Herança Roubada”. 


Filme: Herança Roubada 
Direção: Elle Márjá Eira 
Ano: 2024 
Gêneros: Thriller/Drama 
Nota: 8/10