O vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024 acaba de estrear no Prime Video Divulgação / Filmes Diamente

O vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024 acaba de estrear no Prime Video

Continua-se escandalizado por muito tempo depois de se assistir a “Zona de Interesse”, um relato do absurdo nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Rudolf Franz Ferdinand Höss (1901-1947) foi apenas mais um dos nomes a galvanizar a hediondez do regime instaurado por Adolf Hitler (1889-1945) quando de ascensão ao posto de chanceler da Alemanha, em 30 de janeiro de 1933, nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg (1847-1934), que morreria cerca de ano e meio depois, em 2 de agosto de 1934.

Contudo, Höss decerto foi um das figuras do Terceiro Reich, o Reich de Mil Anos — que, felizmente, durou apenas “doze” —, a personificar com mais veemência o que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) chamou de banalidade do mal, expressão de que sempre se lança mão quando se tenta explicar o alcance de políticas monstruosas como a propalada pela ideologia hitlerista, mas que ainda hoje reserva minudências invisíveis a olho nu. O tenente-coronel Höss realizava seu trabalho com tanta perícia e sangue-frio que não se importava de morar a apenas poucos metros do Konzentrationslager Auschwitz II–Birkenau, o campo de concentração de onde ninguém escapava da chamada Endlösung der Judenfrage, a Solução Final para a Questão Judaica (e até o preferia).

O roteiro de Glazer tira das páginas do romance homônimo do britânico Martin Amis (1949-2023), publicado em 2014, boas referências de elementos visuais quanto a ajudar o público a distinguir um ambiente do outro, fazendo-o, guardadas as devidas proporções, cúmplice da psicopatia dos Höss, até que sons como murmúrios opressos ganham projeção e infiltram-se pela casa, aumentando de intensidade até se tornarem audíveis a quilômetros, berros de centenas de infelizes que sufocavam com o cianeto de hidrogênio do Zyklon B, pesticida usado nas câmaras de gás de Auschwitz, em cujas paredes ficavam cravadas a unha as derradeiras (e vãs) tentativas de se fugir daquele inferno. 

Uma das primeiras ideias que podem vir à roda do pensamento enquanto se acompanha o filme é a de oportunismo. Não teria lógica, pode pensar um incauto, reviver uma história já tão bem-resolvida para os alemães e quiçá para alguns judeus, e tanto pior se não apresenta nenhuma nova prova, personagens acerca dos quais jamais se falou, fatos que absolveriam ou seriam capazes de remover o verniz de santidade deste ou daquele. Entretanto, já na abertura tem-se respondida a indagação sobre a relevância de se voltar ao passado e saber o que poderiam querer os Höss, uma família pacata a tomar banho de sol num bosque nas cercanias de sua morada — queriam o que todo mundo quer, e também por isso se deixariam seduzir por Hitler.

Um dos aspectos mais espantosos em “Zona de Interesse” é sua estética da limpeza. A fotografia de Lukasz Zal prima pela luz ambiente, tônica que perdura no decorrer dos 105 minutos, que poderiam se desdobrar em mais uma hora, no mínimo. Nessa primeiro contato da audiência com os personagens centrais, núcleo que não se abre muito a terceiras interações, vê Höss destacado dos outros, soberano, de pé a contemplar a paisagem, e pouco depois todos voltam para seu refúgio. Ao longe, se vislumbra uma nuvem de fumaça preta que, feitos os ruídos nada misteriosos do terreno ao lado, cresce, quase a engoli-los, mas eles a ignoram. 

Mais tarde, o oficial aparece paramentado não com a farda da SS, a polícia política do nazismo, mas num terno branco impecável, sem uma ruga. Hedwig Hensel (1908-1989), a esposa também surge num vestido cor-de-rosa, e tudo parece ainda mais farsesco, mais asqueroso, com Christian Friedel e Sandra Hüller no pleno domínio de seus papéis, abrindo-se e fechando-se entre si, indiferentes a tudo quanto poderia se dar — e se dava mesmo — no KL. Glazer elabora a relação dos dois como uma comédia vaudeville, sem a menor pretensão de afetar normalidade, celebrando a vida em aniversários e Natais, enquanto a morte mais injusta e mais indigna está tão perto, o que é duplamente incômodo.

Essa impressão de que o diretor-roteirista nos provoca, nos instiga, dedica-se a tirar de nós o que podemos ter de mais cinicamente vil se mantém e só cessa no desfecho, momento em que a edição de Paul Watts leva-nos à Auschwitz de hoje, o Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, onde os calçados e malas dos prisioneiros repousam em gigantescos nichos separados dos frequentadores por grossas vidraças. Oitenta anos depois. Para sempre. 

Essa contraposição da dureza da História e da poesia da arte, da urgência da verdade e da dissimulação com propósitos tacanhos ou grandiloquentes é o ponto de “Zona de Interesse”. Estamos livres de Auschwitz, mas não dos tantos algozes que se alimentam de seus escombros. 


Filme: Zona de Interesse 
Direção: Jonathan Glazer 
Ano: 2023 
Gêneros: Drama/Suspense  
Nota: 10