Na Netflix, uma história fascinante sobre amor, felicidade e escolhas difíceis Divulgação / Sony Pictures

Na Netflix, uma história fascinante sobre amor, felicidade e escolhas difíceis

Nos últimos dez anos, o chileno Sebastián Lelio tem se destacado por retratar personagens femininos complexos e fora do padrão, que desafiam todas as convenções. Seus filmes são marcados pela denúncia do incansável processo de exclusão da mulher e a consequente resposta, em que as mulheres lutam contra as normas estabelecidas e buscam libertar-se reafirmando sua identidade mesma. “Desobediência”, o melodrama à moda antiga de Lelio sobre o poder da escolha, ambienta o enredo no judaísmo ortodoxo, mas poderia estar-se falando de qualquer doutrina, em qualquer parte do mundo, com crenças a preceituar o destino das pessoas, sem chance de mudanças. 

No pulsante “Gloria” (2013), o diretor se concentra na vida mais ou menos estável e decerto bastante tediosa de uma divorciada que, sem nem perceber, faz questão de conservar a rotina de um tempo já morto, até que dá início ao caso que a traz de volta ao baile, não sem grandes e perigosas revelações; e o drama de uma mulher transgênero que perde o namorado idoso ganha todas as muitas faces da tragédia em “Uma Mulher Fantástica” (2017). Passados cinco anos, Lelio deu nova evidência de seu assombroso talento em “O Milagre”, a convincente história de uma farsa.

Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue publicado em 2016, o filme de 2022 é o que mais apresenta pontos de contato com “Desobediência”, uma história acerca dos limites impostos por certa fé à felicidade e ao livre arbítrio dos homens, ideia a que o longa recorre em várias ocasiões no transcorrer de 114 minutos. Ronit Krushka, a personagem central aqui, é a Lib Wright do século 21. Em 1862, a enfermeira inglesa da pena de Donoghue vai para a Irlanda encarregada da investigação do mistério em torno de Anna O’Donnell, uma jovem aldeã que há quatro meses obedece a um jejum rigoroso e não padece de qualquer abalo de saúde. Narrativa muito semelhante à que se dá com Ronit, tornando à casa paterna na intenção de reaver um tempo morto. Ligando-as, um escândalo motivado pelo emprego oblíquo da religião e pela deformidade da fé. 

No princípio, Hashem fez três classes de criaturas: os anjos, as feras e os seres humanos. Desses, claro, só o homem afronta Deus, justamente por ter o poder de escolha, por ser evoluído e corrupto o bastante para optar por desobedecê-Lo. Anjos não podem fazer o mal, porque não o conhecem; feras guiam-se apenas pelo instinto, regalo da natureza, ou seja, do próprio Criador; e gente faz o que dá-lhe na veneta, ignorando de propósito o que é mal ou bem e, pior, transformando este no primeiro. O rabino Rav Krushka, de Anton Lesser, faz esse sermão durante o culto na sinagoga e cai morto, fulminado por um ataque cardíaco.

A partir dai, a adaptação de Lelio e Rebecca Lenkiewicz para o romance homônimo de Naomi Alderman, mergulha fundo na vida de Ronit, a filha com quem Rav já não mantinha nenhum contato há décadas, e é mais e mais visível seu esmorecimento em tudo quanto diga respeito a seu passado em família. Ronit tornou-se uma fotógrafa celebrada, com trabalhos que registram o underground de Nova York, mas interrompe seus compromissos para viajar a Londres e acompanhar o funeral do pai. Ao chegar, a despeito da estranheza que inspira na comunidade que tinha o personagem de Lesser por guia espiritual, só por causa das roupas e o jeito algo independente demais, vê que muito pouco mudou, inclusive dentro de si mesma.  

A viagem de Ronit marca o filme dentro do filme em “Desobediência”. Rachel Weisz começa a dizer a que veio, e Lelio aproveita-se da fisionomia blasée da atriz para dar a quem assiste evidências quase imperceptíveis sobre o que aconteceu para que viesse a ruptura de pai e filha, tão categórica a ponto de fazê-lo declarar a todos que nunca tivera descendentes — a propósito, jamais se diz nada quanto à mãe de Ronit, o mais notável deslize de Lelio e Lenkiewicz. A homossexualidade de Ronit só vem à superfície depois que a protagonista fica sabendo que Dovid Kuperman, o filho adotivo de Rav, não se casou com Hinda, papel de Clara Francis, mas com Esti — e seu rosto apagado se ilumina do fogo da paixão, recolhida, mas flamejante até hoje. Weisz, Rachel McAdams e Alessandro Nivola estão presentes em todas as cenas desse ponto até o final, e ninguém enjoa deles. O diretor vai ajustando um ou outro descompasso e consegue explicar irretocavelmente o envolvimento de Ronit e Esti, até que paire entre a audiência a dúvida sobre se Dovid não as teria afastado a mando do rabino, na esperança de ser formalmente tido como seu substituto.

O requinte desse jogo de manipulação vai até a última cena, com os personagens de Weisz, McAdams e Nivola revezando-se no posto de vilão: fica-se com raiva de Ronit por estar de volta e atirar a vida do casal num abismo de cruéis incertezas, mormente agora que Esti engravidou ao cabo de anos de tentativas frustradas; odeia-se a frouxidão moral da antimocinha de McAdams, que nunca tem muito bem resolvido se vai ou não para Nova York com a ex, com quem passa a ter episódios de recaída; e mesmo o sensato Dovid experimenta a rejeição do público, ou por não usar de mais energia no trato com a esposa, ou por deixar que todos esses novos fatos melancólicos corram sem freio — e assim mesmo não deixe de ser um estorvo na vida das duas.  

Como em “O Milagre”, nao há nenhuma solução fácil em “Desobediência”, e, de todo modo, o filme se encerra com um derradeiro lance risivelmente farsesco, que, examinado per se, não se afina ao andamento orgânico do que foi narrado até ali. Em todo caso, este é sem dúvida um dos melhores filmes de Lelio graças a sua habilidade de cutucar feridas até que sangrem de novo. 


Filme: Desobediência 
Direção: Sebastián Lelio 
Ano: 2017 
Gêneros: Romance/Thriller 
Nota: 9/10