O filme que Quentin Tarantino considera um de seus favoritos da década chegou à Netflix Divulgação / Voltage Pictures

O filme que Quentin Tarantino considera um de seus favoritos da década chegou à Netflix

Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” (2019) desvenda o envolvimento de Frank Sheeran (1920-2003), um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa (1913-1982). O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino (1903-1994), um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro.

Meier Suchowlański, também conhecido como Meyer Lansky (1902-1983), é a versão russo-americana do protagonista do filme de Martin Scorsese, e “Lansky — Uma História da Máfia” outra das magníficas sagas sobre um homem vaidoso e prepotente, que domina como poucos a arte de iludir.  Não é de hoje que a acidentada trajetória desses homens que chegam à velhice sem crises existenciais — e até ostentando uma maldisfarçada altivez ao lembrar de suas desventuras — tornou-se um gênero que arrasta multidões aos cinemas e garante a sobrevida desses enredos nas plataformas de streaming, e Eytan Rockaway se aproveita disso da melhor forma.

Junto com o pai, Robert, professor emérito de literatura inglesa e história na Universidade de Tel Aviv e autor de “Meyer Lansky, Bugsy Siegel & Co: Lebensgeschichten jüdischer Gangster in den USA” (“Meyer Lansky, Bugsy Siegel e companhia: histórias de vida de gangsters judeus nos EUA”, em tradução literal, sem edição em português e publicado em 1998), Rockaway assina um texto cuidadoso, reflexivo, que remove um pouco do verniz de falso glamour que teima em envolver essas figuras do submundo, tanto mais as que já parecem tragadas pela bruma corrosiva do tempo. 

O que seria do cinema sem seus personagens marginais? Flertando abertamente com o perigo, com o crime, esses tipos têm o condão de tomar a preferência, ainda que não passem de ilustres coadjuvantes, dando uma rasteira no elenco principal. Como filmes são manifestações artísticas singulares, acontece de dois personagens centrais, igualmente desajustados, lutarem por sobressalência numa narrativa, e tanto mais se a história se estende por cenários em que, originalmente, não poderia se encaixar. Organizações criminosas só ganham a aura de glamour que resiste ao tempo porque seus integrantes, donos de um sobrenatural talento para a dourar a própria História, encontram ampla guarida junto à imprensa, à academia, aos políticos e mesmo ao Judiciário quanto a separar o que interessa do que deve permanecer embaixo do tapete, daí resultando a guerra de versões que tanto calham a estes dias estranhos que vivemos. 

O diretor elabora a imagem de Lansky como um vetusto cavalheiro interessado em colocar uma pedra sobre o boato de que teria fortuna avaliada em trezentos milhões de dólares em paraísos fiscais e seria o proprietário de metade dos cassinos libaneses. A interpretação elegante e calorosa de Harvey Keitel dá mesmo a impressão de que seu personagem seja apenas um velhinho inofensivo e solitário, sentimento que fica ainda mais nítido quando da primeira das várias entrevista que David Stone faz com ele, para a publicação de uma biografia póstuma.

Na pele de um jornalista quarentão completamente perdido, sem emprego e devendo meses de pensão alimentícia à filha pequena, Sam Worthington é tão convincente quanto o colega, e a cada movimento de Stone resta mais clara a ambiguidade do mafioso, que Rockaway conserva no plano geral que mostra caminhando por uma praia de Miami nos anos 1980, já morrendo de câncer de pulmão. E sempre sozinho. 


Filme: Lansky — Uma História da Máfia 
Direção: Eytan Rockaway 
Ano: 2021 
Gêneros: Drama/Crime/Thriller 
Nota: 8/10