O melhor suspense psicológico dos últimos 3 anos acaba de chegar à Netflix

O melhor suspense psicológico dos últimos 3 anos acaba de chegar à Netflix

Qualquer um que tenha sangue correndo nas veias já se sentiu como Eloise Turner, a protagonista de “Noite Passada em Soho”, o suspense tragicômico de Edgar Wright — especialmente, claro, naqueles dias tão maravilhosos quanto perversos em que temos de decidir o que fazer da vida mesmo não sabendo direito quem somos. O problema de Ellie não é exatamente esse, saber quem é, mas adequar seus desejos mais essenciais e sua própria identidade ao que o mundo quer que ela seja, uma garota contemporaneamente descolada, cujos gostos alinhem-se às regras que algum iluminado ditou sem que exceda ou falte um milímetro.

No texto de Wright e da corroteirista Krysty Wilson-Cairns há espaço para uma pletora de referências à cultura pop, mormente aos primórdios do rock e do punk da Londres da segunda metade dos anos 1960, enchendo o filme de vigor e do agradabilíssimo gosto vintage que calha tão bem à personalidade de sua mocinha, até que uma virada meio brusca ameaça colocar tudo a perder. Quase como por encanto, o diretor volta o leme rumo a praias mais estimulantes, sem abdicar por completo da necessidade de arranhar o terreno do sobrenatural.

Querendo ou não, somos, todos, escravos do tempo, carrasco da vida que fustiga-nos com a morte de quando em quando. Desde o primeiro suspiro, o homem é apanhado numa contenda figadal contra o único adversário que nunca poderá vencer, passem-se duas horas ou um século. Sem pressa, o mais cínico dos verdugos permite que nos locupletemos com o confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, sendo que o gênero humano está essencialmente condenado a perseguir a quimera de ser feliz, já que o mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C – 348 a.C), só um simulacro das projeções muito íntimas de cada um, de conceitos eivados de nossas idiossincrasias as mais diversas, que por seu turno mantêm-nos mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios.

Realidade das mais incontestáveis dentre todas, a ditadura do tempo se estende para além de nossa vã filosofia e de nossa exígua compreensão, e, enquanto houver alguma forma de vida pulsando no caos maravilhoso do universo, ela sempre haverá de existir. O problema fundamental do homem não é o avanço despótico das horas, mas encontrar um meio, por mais improvável que seja, de fazer-se-nos revelar o gozo onde alastra-se o desespero.

Ellie consegue, afinal, mudar-se para a capital da Inglaterra depois de ser aprovada no processo seletivo de uma faculdade de moda. Comemora com a avó, Peggy, de Rita Tushingham, e começa a enfiar na mala toda a quilométrica coleção de discos, como se estivesse mesmo determinada a não mais voltar — ou como se fosse estar disponível para ouvi-los. A garota chega a Londres com a fome de vencer tão característica dos jovens, e com a mesma intensidade, vai ao extremo oposto e conhece meandros da sordidez humana. No primeiro contato com as novas colegas, pensa que fará grandes amizades, mas naquela mesma noite, numa festa com a turminha liderada por Jocasta, trata de despedir-se das ilusões de ser querida do jeito mais duro.

Nesses primeiros minutos de “Noite Passada em Soho”, a rivalidade entre as personagens de Thomasin McKenzie e Synnøve Karlsen dá o tom, mas o diretor reserva para sua estrela um pouco mais de brilho. McKenzie, que conserva a doçura de Tom, a protagonista de “Sem Rastros” (2018), de Debra Granik, e acrescenta-lhe uma dose de surpreendente maturidade, encontra o contraponto perfeito com a Sandy de Anya Taylor-Joy, num papel dificílimo de uma história sofisticada e pouco crível. Como a vida em muitas circunstâncias.


Filme: Noite Passada em Soho
Direção: Edgar Wright
Ano: 2021
Gêneros: Terror/Mistério/Comédia
Nota: 9/10