O filme que foi aplaudido de pé e fez diretor ser processado e ameaçado de morte acaba de estrear na Netflix Divulgação / Alamode Film

O filme que foi aplaudido de pé e fez diretor ser processado e ameaçado de morte acaba de estrear na Netflix

Nenhum cenário parece ser cruel o bastante quando se mira a degradada condição das mulheres no mundo islâmico. No caso do Irã, a teocracia que vige no país há 45 anos, desde a deposição do xá Reza Pahlavi (1919-1980) em 11 de fevereiro de 1979, as condena a uma rotina de constantes importunações de ordem moral, conferindo o comprimento do hijab, como aconteceu com Mahsa Amini (1999-2022), morta a cinco dias de completar 23 anos depois de detida por usar o lenço em torno da cabeça curto demais, deixando a mostra a volumosa franja negra.

O assassinato covarde de Amini, claro, não passou em branco, nem mesmo no feudo de intolerância fundado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), hoje sob o tacão de Ali Khamenei, o líder supremo do clero muçulmano no Irã, e Ebrahim Raisi na presidência, mas nem por isso a realidade apresenta-se menos macabra para quem não é homem na antiga Pérsia de Avicena (980-1037), o Príncipe de Todas as Ciências, o que “Holy Spider” mostra com escandaloso didatismo. Ali Abbasi se detém sobre um dos diversos episódios de feminicídio incorporados ao dia a dia do Irã, nascidos, claro, do mais ruidoso desprezo pelas liberdades individuais que o fundamentalismo islâmico não cansa de patrocinar.

Em 2000, um matador de prostitutas divide opiniões em Mashhad, no nordeste do país, próximo das fronteiras com o Afeganistão e o Turcomenistão. O roteiro de Abbasi, Afshin Kamran Bahrami e Jonas Wagner fixa-se sobre essa dicotomia, e enquanto o público toma pé dahistória, Arezoo Rahimi, uma repórter free lancer, tenta empenha-se em publicar aquela que pode ser a matéria de sua vida, mas esbarra em providências banais, como garantir que será autorizada a ocupar o quarto que reservara de Teerã, onde mora. Depois de algumas idas e vindas, o recepcionista, intrigado com aquela frágil, sozinha e, para não fugir ao costume, meio libertária demais pela cabeça meio a descoberto, autoriza que a mulher suba.

No dia seguinte, tem início a peregrinação kafkiana de Rahimi a repartições dos serviços de segurança de Mashhad, cenas em que Zar Amir Ebrahimi pega a audiência pela unha e o diretor esmiúça os diversos expedientes asquerosos a que sua heroína precisa sujeitar caso deseje levar sua busca até o fim. Todos os homens que atravessam seu caminho têm um entendimento duvidoso de suas funções, ou principalmente os policiais, de quem é obrigada a se livrar não sem alguma rispidez.

Abbasi recheia o filme com duas ou três cenas em que Saeed, o assassino vivido por Mehdi Bajestani, atrai meretrizes e as leva para seu apartamento, sempre convenientemente vazio. Saeed, um chefe de família como qualquer outro à primeira vista, transforma-se num monstro que trucida mulheres com o próprio hijab, ironia finíssima com que o diretor tece sua própria ideia acerca da dominação ideológica no Irã hoje. Pela última sequência, aterradora, parece que o gosto pela barbárie no Irã é uma moléstia que passa para de pai para filho.


Filme: Holy Spider
Direção: Ali Abbasi
Ano: 2022
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 9/10