Machadianices de um observador atáxico

Machadianices de um observador atáxico

Inaugurar uma coluna é um desafio muito interessante, ainda mais quando não se quer dar sermões da montanha, nem ser crucificado, mas já sabendo que o caminho é com a “cruz” nas costas. Dizem que cada um carrega (ou Deus dá) a cruz que consegue. Gosto dessa imagem, apesar de saber que, por vezes, a cruz é muito pesada e isso faz com que a hora do descanso seja levada em conta, mesmo sendo ateu.

A ideia inicial era uma coluna com observações do cenário que me ronda e as minhas referências. Apresentei isso ao nosso presidente e novo imortal, Ademir Luiz, que remeteu ao editor da revista, Carlos Willian. Carlos, por sua vez, fez uma proposta mais audaciosa: produzir nessa coluna uma espécie de “diário da doença”. Pensei muito sobre isso antes, e agora estava na ordem do dia essa decisão. Pois meus textos — não acadêmicos — publicados desde o diagnóstico da ataxia espinocerebelar, tipo 3 — doença de Machado-Joseph — ou, para os íntimos, SCA3 — doença neurodegenerativa, progressiva, incurável, hereditária, neuromuscular, não terminal; ainda bem —, estão recheados de referências à doença, exceto os artigos políticos. Visitem o site da associação: www.abahe.org.br e também o www.ataxia.info!

Fiz uma contraproposta sobre o modo como vou ocupar esse espaço. Fazer um decorrer mais explícito da doença, mas não como se fosse o meu “samba de uma nota só”. É a magia da literatura: falar de diversos assuntos falando de um só ou falar de um só falando de vários. Isso está no proceder. Mas Carlos me ganhou quando disse: “Mas a literatura é sobre sangrar. E sangrar em vida”.

Aqui vai uma oportunidade de dar voz, do meu ponto de vista limitado, por meio da palavra escrita, aos doentes de doenças raras, que, desamparados, sofrem sozinhos. Por não terem tratamento adequado, espaço para lamuriar e refletir, e com isso sentir que não estamos sós, é uma oportunidade para usar alguns mantras como: a ataxia não me define, quem tem ataxia tem pressa… porém isso sem ser monotemático, o que me ajuda a falar das viagens, das seduções, do dia a dia e mal dos bolsonaristas.

O histórico familiar, o diagnóstico, as memórias, o passado, o presente e algum futuro, as limitações físicas cada vez maiores, o impacto psicológico, a certeza de que a vida é viver cada dia. Mas, como não gosto de tristeza e por mais que esse espaço sirva como “utilidade pública”, espero não me tornar um “coach”.

Vou começar contando uma história do meu marcante ano português.

Estive em Portugal fazendo um pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa, supervisionado pelo professor e grande crítico machadiano Abel Barros Baptista. Fazia um estágio acompanhando suas aulas e desenvolvendo pesquisas e leituras machadianas a partir de um projeto sobre “Quincas Borba”, que depois posso falar mais. E foi então que decidi me inscrever no Instagram para registrar meu tempo português. Funcionou de cara.

Um amigo itatiaiense (morador da república autônoma do conjunto Itatiaia), de infância, o Rodrigo, para os sabedores do convívio adolescente, chamado de “São Jorge”, os recíprocos “São”. E não era um elogio corintiano, mas sim por domínio dos dragões. Entendam essa alcunha adolescente como quiserem.

E logo ele me viu fazendo blogueiragem lisboeta e me perguntou: “Uai, São, você tá em Lisboa?” E eu: “Sim… vamos nos encontrar?” Encontramo-nos num ótimo bar brasileiro, na rua da imprensa nacional, chamado Jobim (publicidade gratuita! O gerente me tratava maravilhosamente bem), e ele apareceu com uma amiga. Estava frio. E ela: “Eu não iria vir, mas quis saber se o filho do professor Pantaleão era legal como ele”. E eu: “Ele é mais, mas espero não te decepcionar”. Bebemos todas, caí no bar e o Rodrigo disse que iria fumar e sumiu, foi para casa.

Tempos depois, foi aniversário dele. Marcou num bar na beira da praia para a confraternização. Encontrei-o antes de ir, no caminho, na estação de metrô, em Campo Pequeno. E ele ficou bravo, pois eu sempre fui enrolado; com os sintomas da doença, é tudo mais lento e difícil, ainda mais só e sem tempo de se adaptar, principalmente porque quando você se adapta já não tem serventia mais, cada dia é um flash. Fomos.

De lá, tinha um samba em outra praia, nosso destino depois do almoço degustando polvos. O amigo dele, e a esposa do amigo (que por acaso tinha sido minha aluna), disse, depois de me ver indo ao banheiro de bengala e antes de acender “um” plantado na sua “horta”: “Tinha um professor meu lá em Goiânia que dizia quando a gente zoava (bullying) os coleguinhas: ‘Vocês precisam olhar a pessoa do olho pra cima, é o que importa’”.

Entendi, claro, ele estava me valorizando e sendo gentil. Mas a pessoa pode não ser “normal”, andar estranho, e a gente ser legal com ela. Inclusive, quem tem deficiência também tem desvios morais graves. Seguindo. Já depois de muitos copos, o “São” veio conversar com maior intimidade comigo. Relembramos que nos conhecemos quando meu irmão fez uma rampa na esquina da rua com os parceiros para saltar de bicicleta, eu devia ter uns 7 anos.

E ele, sensibilizado, me disse: “São, quero te pedir desculpas, fiquei impaciente com o seu atraso. Eu sabia que a doença não era fácil, minha mãe era amiga da sua mãe quando ela ficou doente, soube da morte do Pablo, mas não tinha reparado em você, porque no bar nos movimentamos pouco e bebemos todas, e aí esqueci. Cara, você aqui nessa situação…” E ele marejou os olhos. E eu: “São, obrigado. Sério. Mas eu não estou aqui para chorar, nem para me despedir da vida. Vou chorar, sim. Pensar sobre a finitude. Estou em Lisboa, estudando o meu autor predileto, acompanhando o trabalho do professor que quero. Te encontrei, encontrarei outras pessoas, conhecerei outras. Vim para viver, não para morrer. Vamos escutar Paulo Vanzolini, clássico na voz de Beth Carvalho, que estão tocando! ‘Reconhece a queda / Mas não desanima / Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima…’”

O certo seria fazer dessa inauguração um manifesto irônico do ex-presidente, o apoio a Israel “cristão e não judeu” e a sua cloroquina na Avenida Paulista. Mas tanger gado cansa. Então que seja agradável para os leitores e também para mim; duas vezes por mês, de quinze em quinze dias, espero estar aqui, talvez dê até em livro. E por fim vai a máxima tolstoiana: se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. Se calhar…